São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FOLHA INÉDITOS

Além da culpa


Chega ao Brasil pela editora Estação Liberdade "O Diário de um Velho Louco", tragicomédia de Junichiro Tanizaki escrita na década de 60


12 de julho
Todavia, a maldade não pode estar explícita, mesmo na mulher de índole má. Considero indispensável que, quanto maior a maldade, mais perspicaz seja a mulher. Existem porém limites para a maldade: assassinas e ladras não me agradam, mas faço ressalvas mesmo quanto a elas. Embora sabendo, por exemplo, que determinada mulher é uma ladra dessas que se introduzem em hospedarias para roubar carteiras de hóspedes adormecidos, tenho a impressão de que eu não resistiria à tentação de me relacionar com ela apesar de tudo, meu interesse pela mulher despertando exatamente em virtude da sua natureza criminosa.
Em meus tempos de faculdade tive um colega de nome Uru Yamada, bacharel em direito. Trabalhava na Prefeitura de Osaka, mas há muito é falecido. Seu pai havia exercido a advocacia durante longos anos e no início do período Meiji (1868-1912) chegou a defender Takahashi Oden. Ao que parece, o homem falou muitas vezes ao filho Uru da estranha beleza dessa assassina. Sensual, voluptuosa, não sabia como descrevê-la, teria dito o velho. Nunca vira mulher de beleza tão inquietante, ela devia ser o exemplo perfeito daquilo que se convencionou chamar de mulher fatal, ele até não se importaria de ser morto por uma mulher desse tipo, vivera o pai confidenciando ao filho com um toque de incontida admiração na voz.
Pois, se nos dias atuais me surgisse uma mulher como Oden, eu talvez me desse por feliz em ser morto por ela, já que nada de extraordinário me acontecerá mesmo que viva mais alguns anos. Acho preferível ser morto de uma vez com requintes de crueldade a continuar como agora, semivivo e suportando as dores que me atormentam pernas e mão.
Seria acaso a percepção desse tipo de imagem em Satsuko a razão do meu amor por ela? Satsuko é um pouco perversa, um pouco irônica e mente um pouco. Não se dá muito bem nem com a sogra, nem com as cunhadas. Não tem muito amor por crianças. Recém-casada, esses defeitos eram quase imperceptíveis, mas evidenciaram-se gradativamente nestes últimos quatro ou cinco anos. Parte por minha culpa, eu posso tê-la levado a isso. Na verdade, Satsuko não é tão má. Sua natureza deve ser basicamente boa ainda hoje, mas aprendeu a simular maldade não sei desde quando e passou a se orgulhar disso. Na certa por perceber que, assim agindo, agradava a este velho. Tenho certa tendência a mimá-la mais que às minhas próprias filhas e não me agrada vê-la relacionando-se cordialmente com as cunhadas.
Quanto mais maldosa Satsuko se mostra com relação às minhas filhas, mais ela me atrai. Essa disposição é recente, mas se acentua com o passar do tempo. Pergunto-me se o fato de suportar as dores físicas e a incapacidade de fruir os prazeres de um sexo normal distorceriam a tal ponto a natureza humana... Isso me fez lembrar a desavença doméstica de dias atrás.
Keisuke já está com sete anos de idade e frequenta o primeiro ano do primeiro grau, mas não há sinais de que venha a ganhar um irmãozinho. Minha velha nutre forte suspeita de que Satsuko esteja lançando mão de recursos artificiais para evitar uma nova gravidez. A mesma suspeita existe no meu íntimo, mas, para a minha velha, eu vinha sempre afirmando que isso era pouco provável. Inquieta, ela parece ter falado diversas vezes de suas dúvidas ao meu filho.
- Satsuko não está fazendo nada disso, fique tranquila - ri Jokichi sem lhe dar atenção.
- Tenho certeza de que faz! Sei disso muito bem - insiste minha velha.
- Ah-ah! Pergunte à Satsuko, nesse caso.
- Estou falando sério, não ria. A culpa é sua, você é indulgente demais com a sua mulher e ela o faz de bobo!
Finalmente, Satsuko acabou sendo chamada à presença dos dois por meu filho para se explicar. Vez ou outra, a voz aguda da minha nora me chegava aos ouvidos. Quase uma hora se passou nisso e, por fim, minha velha veio me chamar:
- Venha cá um pouco, vovô.
Eu porém recusei-me a ir, de modo que não sei direito o que aconteceu. Contudo, descobri mais tarde que, de tanto ouvir observações sarcásticas, Satsuko acabou enfrentando minha velha.
Acontece que não gosto muito de crianças - teria ela dito. Ademais, para que pôr no mundo tantos filhos se estão prevendo para breve uma chuva de cinza radiativa?
Minha velha não ficou atrás e a acusou:
Você não respeita o seu próprio marido! Pensa que não sei que você o chama cruamente de "Jokichi" quando não está em minha presença? E diante de mim meu filho a chama de "Satsuko", mas, na presença de estranhos, diz "meu bem"! É você que o obriga a chamá-la desse jeito, não é?
A discussão tomou rumos inesperados e estendeu-se interminavelmente. A essa altura, tanto Satsuko como minha velha estavam furiosas, e nada do que meu filho dissesse era capaz de acalmá-las.
- Já que nós dois a desagradamos a esse ponto, permita-nos sair daqui e viver em nossa própria casa, vovó. Boa idéia, não acha, querido?
Satsuko pusera o dedo na ferida e minha velha não achou o que retrucar. As duas sabiam perfeitamente que eu jamais concordaria com essa solução.
- A enfermeira Sasaki e a vovó podem cuidar do vovô. É isso que devemos fazer, querido - insistiu Satsuko com crescente entusiasmo ao notar que minha velha murchara. Fim de disputa. Arrependi-me de não ter presenciado a cena, haveria de me divertir deveras.
- A estação das chuvas chegou ao fim, não chegou? - disse hoje minha velha entrando em meu aposento. A refrega de dias atrás deixou vestígios, pois ela me parece um tanto abatida.
- Já? Nem choveu direito este ano...! - respondo.
- Mas hoje já é o dia da Feira de Flores. E isso me fez lembrar: que decidiu a respeito do túmulo?
- Para que a pressa? Como disse antes, não quero meu túmulo num desses cemitérios de Tóquio. Sou um genuíno edokko, mas a Tóquio destes dias não me agrada. Construir um túmulo em cemitérios de Tóquio tornou-se arriscado: por qualquer motivo e de uma hora para outra posso ter meus restos mortais transferidos para lugares inesperados. E o do bairro de Tama não lembra nada os tradicionais de Tóquio. Recuso-me a ser enterrado lá.
- Sei de tudo isso e também que procura um lugar em Kyoto. Mas você mesmo me disse que pretendia ter tudo resolvido para o Daimonji do próximo mês, não disse?
- Tenho ainda um mês inteiro pela frente. É posso pedir a Jokichi que vá até lá.
- Não é melhor conhecer pessoalmente o local?
- Neste calor e nas minhas condições? Não vejo como. Talvez eu deva esperar os ritos de Higan.
Minha velha e eu já recebemos nossos nomes budistas póstumos. Eu me chamarei Takumyou'in Yukan Nissokoji, e ela, Jokan'in Myoko Nisshundaishi. Eu porém não gosto da seita Nichiren e pretendo transferir-me para a Jodo ou a Tendai. O motivo principal da minha aversão é a imagem -um boneco de barro com uma touca de algodão na cabeça- do santo Nichiren nos santuários dessa seita e que somos obrigados a reverenciar. Se possível, quero ser enterrado no templo Honen'in ou no Shinnyodou, em Kyoto.
- Estou de volta - disse Satsuko nesse momento, entrando em meu quarto. Eram quase cinco da tarde. Dá de cara com a minha velha e se desmancha numa reverência propositadamente cortês. Minha velha desaparece rapidamente.
- Não a vejo desde cedo. Onde andou? - pergunto.
- Fiz compras em diversos lugares, almocei com Haruhisa num hotel, fui em seguida provar uma roupa no Étranger, tornei a me encontrar com Haruhisa e fomos juntos assistir ao "Orfeu Negro" no Yurakuza...
- Seu braço direito está bem queimado de sol.
- É que fui ontem de carro a Zushi.
- Outra vez com Haruhisa?
- Isso mesmo. Ele não dirige, de modo que fui obrigada a guiar tanto na ida como na volta.
- Você parece ainda mais branca com esse único braço queimado.
- Isso acontece porque a direção fica do lado direito, entende?
- Você está corada e me parece um tanto excitada.
- Verdade? Não acho que esteja, mas concordo que Breno Melo me impressionou um pouco.
- Que é isso?
- É o ator principal do "Orfeu Negro". O filme foi baseado na lenda grega de Orfeu e rodado no Rio de Janeiro durante o Carnaval e tem como personagem principal um negro. Aliás, todos os atores são negros.
- E foi esse ator que tanto a impressionou?
- Breno Melo, dizem, é artista amador. Antes, era jogador de futebol. No filme, faz o papel de um motorneiro e, enquanto dirige, vai observando as garotas na rua. Às vezes, pisca para elas. O senhor precisa vê-lo piscando, é um encanto!
- Pelo jeito, não vou achar graça alguma nesse filme.
- Não quer mesmo ir vê-lo? Nem por mim?
- Você me levaria?
- E o senhor iria, se eu fosse junto?
- Até posso.
- Pois então, vou quantas vezes o senhor quiser. Sabe por quê? Porque Breno Melo me lembra muito o Leo Spinoza, que foi antigamente o meu favorito.
- Lá vem você de novo com esses nomes estranhos...
- O Spinoza é um boxeador filipino. Ele chegou a disputar o título mundial na categoria dos pesos-mosca. É negro também, mas não tão bonito quanto o Breno Melo. No entanto, os dois se parecem. Principalmente quando piscam. O Spinoza ainda continua no ringue, mas já não tem o brilho antigo. Ele era realmente muito bom. Ah, como me lembro...!
- Assisti uma única vez a uma luta de boxe...
Nesse momento, minha velha e a enfermeira vieram me avisar que era hora de mais uma seção na prancha inclinada. Satsuko pôs-se a falar no mesmo instante em tom deliberadamente exibido:
- O Spinoza é um negro proveniente da Ilha de Cebu, e o seu forte é o direto de esquerda. O braço esquerdo se estende reto para a frente, bate e se recolhe instantaneamente. Zás-trás, precisa ver a velocidade dos seus golpes! Zás-trás, zás-trás, é lindo! Tem ainda um hábito de expelir o ar sibilando entre os dentes nos momentos em que ataca. E, quando o adversário manda um direto nele, Spinoza não desvia o tronco para a direita ou para a esquerda como a maioria dos boxeadores, ele foge dos golpes tombando o tronco para trás. Nessas horas, faz uma impressionante exibição de maleabilidade.
- Ah, agora entendi a razão do seu interesse por Haruhisa! Ele é queimado de sol, lembra um negro, não é isso?
- Haruhisa tem o peito cabeludo, enquanto os negros têm poucos pelos no corpo. Por causa disso, a pele deles brilha de um modo extremamente atraente quando suam. Eu faço questão de levá-lo comigo para assistir a uma luta de boxe, vovô!
- Deve haver poucos boxeadores bonitos...
- A maioria tem o nariz quebrado.
- Entre boxe e luta livre, qual o mais interessante?
- A luta livre tem muito de espetáculo, mostra muito sangue, mas lhe falta seriedade, entende?
- Mas os boxeadores também tiram sangue um do outro, não tiram?
- Tiram, é verdade. Ficam ensanguentados quando são atingidos na boca, o protetor bucal chega a se partir em três pedaços e a voar, mas, como inexiste a intenção explícita de mostrar sangue, isso não ocorre com muita frequência, como na luta livre. Na maioria dos casos acontece quando a cabeça de um dos boxeadores se choca com o rosto do outro. Ou quando surge um corte na pálpebra.
- A senhora costuma assistir a esses espetáculos? - interrompe a enfermeira Sasaki.
Estarrecida, minha velha apenas ouve, em pé e imóvel há algum tempo. Ela me parece prestes a fugir dali.
- Costumo, e não sou a única na platéia. Muitas mulheres vão assistir.
- Se eu visse uma coisa dessas, desmaiaria na certa - comenta Sasaki.
- A visão do sangue excita um pouco, é verdade. Aliás, nisso consiste a diversão.


Texto Anterior: Centro Manabu Mabe: Lei que muda nome do CCSP é publicada
Próximo Texto: Obsessões povoam a literatura de Tanizaki
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.