São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

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Obsessões povoam a literatura de Tanizaki

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O amor serôdio, isto é, aquele que se manifesta tardiamente ou fora de época, é o tema de "O Diário de um Velho Louco", tragicomédia de Junichiro Tanizaki. Escrito no início da década de 60, quando o autor tinha 76 anos, o livro chamou a atenção pela descrição crua da obsessão sexual de um ancião enfermo.
Não foi o primeiro escândalo literário da vida de Tanizaki. Seu romance "Naomi", de 1924, sobre uma Lolita "avant la lettre", teve sua serialização num jornal de Osaka interrompida por causa de trechos contendo detalhes de amor sadomasoquista.
Nada disso, porém, impediu Tanizaki de ser considerado um dos maiores escritores japoneses do século 20. Influenciado por Edgar Allan Poe, Baudelaire e Oscar Wilde, encontrou voz própria em obras de tom intimista, prosa sofisticada e enredos que falam de grandes obsessões e do conflito entre a antiga tradição de seu país e os novos costumes oriundos do Ocidente. Dizem que teria ganhado o Nobel de literatura, se não tivesse morrido antes, em 1965. O prêmio ficou para Yasunari Kawabata, três anos depois.
Há algumas semelhanças entre Tanizaki e Tokusuke Utsugi, o narrador do romance. Ambos têm a mesma idade e padecem crises médicas parecidas. Tanizaki convalescia de um ataque cardíaco quando redigiu a obra. O personagem, que sofrera uma apoplexia anos antes, viria a ter um infarto depois. Além disso, o diário se abre com uma ida de Utsugi ao teatro kabuki, uma das paixões do autor.
A jornada ao teatro é motivada pelo desejo de Utsugi de assistir ao ator Tosshou interpretando o papel de uma prostituta. Como se sabe, no kabuki, do mesmo modo que no teatro da época de Shakespeare, os atores representam todos os papéis, inclusive os femininos. "Ultimamente venho sentindo uma estranha atração sexual por atores do teatro kabuki interpretando mocinhas", revela Utsugi. "A atração não se manifesta se vejo o ator sem maquiagem: ele tem de estar travestido de mulher..." O trecho continua com uma lembrança do velho de sua única aventura homossexual. Quando ele era jovem, a proprietária de uma casa de gueixas lhe oferecera uma noite de amor com um ator adolescente, especialista em papéis femininos. O ator fizera amor vestido de mulher.
A confissão, de certo impacto, antecipa o relato da real obsessão do personagem: sua nora Satsuko. Ela mora com o marido no andar de cima da casa de Utsugi. Ex-corista, é bonita, inteligente, dominadora e cruel. Consegue do sogro o que quer: dinheiro, jóias, carro. As filhas de Utsugi a odeiam. O velho se compraz em vê-las discutir com a nora. Satsuko sempre leva a melhor.
Utsugi a compara à personagem de Simone Signoret, em "As Diabólicas". No filme, Signoret se faz passar por amiga da mulher assassina, mas na verdade é amante do suposto marido assassinado e cúmplice no plano de matar a rival. Satsuko não chega a ser assassina, mas também tem um amante, ainda que em acordo tácito com o marido.
Utsugi alega não se importar com a presença de Haruhisa, o amante da nora, em sua casa: "Não estou mais em condições de fruir os prazeres de uma aventura amorosa, de modo que quero em troca induzir outras pessoas a se envolverem nessas aventuras e me divertir observando-as". A verdade é que Utsugi se importa. E vive de migalhas do corpo de Satsuko. Ela o permite beijar-lhe a perna, lamber-lhe os dedos do pé. Em troca, exige um valioso anel de olho-de-gato. Mas seria Satsuko má ou estaria desempenhando um papel? Utsugi revela sua predileção por mulheres de índole cruel e Satsuko age como tal, espezinhando o velho e zombando de sua decrepitude.
Quanto mais Satsuko o maltrata, mais o ancião se apaixona. Ele a ama porque ela preenche suas expectativas fetichistas e masoquistas, como o ator do teatro kabuki satisfizera sua fantasia homossexual. Satsuko se maquia e se veste com apuro sedutor. Apresenta-se ao velho portando sandálias das que se usam em espetáculos de strip-tease. Assim como o ator fora para cama em roupas femininas, Satsuko não tira a máscara de "femme fatale".
O requinte do fetichismo erótico se dá quando o velho decide mandar gravar em sua lápide os pés de Satsuko como se fossem as pegadas etéreas de Buda. Dessa forma, seu desejo não consumado em vida se prolongaria pela eternidade. "E quando ela pensasse", ele raciocina, " "Estou pisando os ossos do velho caduco debaixo da terra", minha alma, que estaria viva em algum lugar, sentiria o peso do seu corpo, sentiria dor, sentiria a tenra planta de seus pés. Hei de sentir, mesmo depois de morto. Por que não?"
Em nossa época de cínico moralismo politicamente correto, macaqueado aos berros a torto e a direito, é revigorante voltar a atenção para esse relato de taras sutilmente descritas, com toda a complexidade e o "pathos" acarretados e sem concessão ao decoro, ao puritanismo ou ao ridículo. Se há a consciência da transgressão, não existe a idéia do pecado. Não se fale aqui em culpa cristã.


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