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Obsessões povoam a literatura de Tanizaki
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O amor serôdio, isto é, aquele
que se manifesta tardiamente ou fora de época, é o tema de "O
Diário de um Velho Louco", tragicomédia de Junichiro Tanizaki.
Escrito no início da década de 60,
quando o autor tinha 76 anos, o livro chamou a atenção pela descrição crua da obsessão sexual de
um ancião enfermo.
Não foi o primeiro escândalo literário da vida de Tanizaki. Seu
romance "Naomi", de 1924, sobre
uma Lolita "avant la lettre", teve
sua serialização num jornal de
Osaka interrompida por causa de
trechos contendo detalhes de
amor sadomasoquista.
Nada disso, porém, impediu
Tanizaki de ser considerado um
dos maiores escritores japoneses
do século 20. Influenciado por
Edgar Allan Poe, Baudelaire e Oscar Wilde, encontrou voz própria
em obras de tom intimista, prosa
sofisticada e enredos que falam de
grandes obsessões e do conflito
entre a antiga tradição de seu país
e os novos costumes oriundos do
Ocidente. Dizem que teria ganhado o Nobel de literatura, se não tivesse morrido antes, em 1965. O
prêmio ficou para Yasunari Kawabata, três anos depois.
Há algumas semelhanças entre
Tanizaki e Tokusuke Utsugi, o
narrador do romance. Ambos
têm a mesma idade e padecem
crises médicas parecidas. Tanizaki convalescia de um ataque cardíaco quando redigiu a obra. O
personagem, que sofrera uma
apoplexia anos antes, viria a ter
um infarto depois. Além disso, o
diário se abre com uma ida de Utsugi ao teatro kabuki, uma das
paixões do autor.
A jornada ao teatro é motivada
pelo desejo de Utsugi de assistir
ao ator Tosshou interpretando o
papel de uma prostituta. Como se
sabe, no kabuki, do mesmo modo
que no teatro da época de Shakespeare, os atores representam todos os papéis, inclusive os femininos. "Ultimamente venho sentindo uma estranha atração sexual
por atores do teatro kabuki interpretando mocinhas", revela Utsugi. "A atração não se manifesta se
vejo o ator sem maquiagem: ele
tem de estar travestido de mulher..." O trecho continua com
uma lembrança do velho de sua
única aventura homossexual.
Quando ele era jovem, a proprietária de uma casa de gueixas lhe
oferecera uma noite de amor com
um ator adolescente, especialista
em papéis femininos. O ator fizera amor vestido de mulher.
A confissão, de certo impacto,
antecipa o relato da real obsessão
do personagem: sua nora Satsuko. Ela mora com o marido no andar de cima da casa de Utsugi. Ex-corista, é bonita, inteligente, dominadora e cruel. Consegue do
sogro o que quer: dinheiro, jóias,
carro. As filhas de Utsugi a
odeiam. O velho se compraz em
vê-las discutir com a nora. Satsuko sempre leva a melhor.
Utsugi a compara à personagem
de Simone Signoret, em "As Diabólicas". No filme, Signoret se faz
passar por amiga da mulher assassina, mas na verdade é amante
do suposto marido assassinado e
cúmplice no plano de matar a rival. Satsuko não chega a ser assassina, mas também tem um amante, ainda que em acordo tácito
com o marido.
Utsugi alega não se importar
com a presença de Haruhisa, o
amante da nora, em sua casa:
"Não estou mais em condições de
fruir os prazeres de uma aventura
amorosa, de modo que quero em
troca induzir outras pessoas a se
envolverem nessas aventuras e
me divertir observando-as". A
verdade é que Utsugi se importa.
E vive de migalhas do corpo de
Satsuko. Ela o permite beijar-lhe a
perna, lamber-lhe os dedos do pé.
Em troca, exige um valioso anel
de olho-de-gato. Mas seria Satsuko má ou estaria desempenhando
um papel? Utsugi revela sua predileção por mulheres de índole
cruel e Satsuko age como tal, espezinhando o velho e zombando
de sua decrepitude.
Quanto mais Satsuko o maltrata, mais o ancião se apaixona. Ele
a ama porque ela preenche suas
expectativas fetichistas e masoquistas, como o ator do teatro kabuki satisfizera sua fantasia homossexual. Satsuko se maquia e
se veste com apuro sedutor. Apresenta-se ao velho portando sandálias das que se usam em espetáculos de strip-tease. Assim como
o ator fora para cama em roupas
femininas, Satsuko não tira a
máscara de "femme fatale".
O requinte do fetichismo erótico se dá quando o velho decide
mandar gravar em sua lápide os
pés de Satsuko como se fossem as
pegadas etéreas de Buda. Dessa
forma, seu desejo não consumado
em vida se prolongaria pela eternidade. "E quando ela pensasse",
ele raciocina, " "Estou pisando os
ossos do velho caduco debaixo da
terra", minha alma, que estaria viva em algum lugar, sentiria o peso
do seu corpo, sentiria dor, sentiria
a tenra planta de seus pés. Hei de
sentir, mesmo depois de morto.
Por que não?"
Em nossa época de cínico moralismo politicamente correto, macaqueado aos berros a torto e a direito, é revigorante voltar a atenção para esse relato de taras sutilmente descritas, com toda a complexidade e o "pathos" acarretados e sem concessão ao decoro, ao
puritanismo ou ao ridículo. Se há
a consciência da transgressão,
não existe a idéia do pecado. Não
se fale aqui em culpa cristã.
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