São Paulo, segunda, 4 de maio de 1998

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POR QUE ESCREVO
Areia escorrendo por entre os dedos

HELOISA SEIXAS
especial para a Folha

Há quem ache este um assunto proibido. Como tentar descrever um fantasma que se viu -ou um sonho que se teve. Alguns escritores, quando começam a falar de seus livros e das razões por que os fazem, são acometidos da mesma frustração que sentimos ao contar um sonho: acordamos impregnados por sensações, maravilhosas ou terríveis, mas, quando começamos a tentar descrevê-las, vemos que o sonho se torna instantaneamente tolo, vazio, e que as sensações, antes tão fortes, escapam-nos como areia por entre os dedos.
O escritor argentino Rodolfo Rabanal disse que, quando começa um livro, começa de fora para dentro, tendo sempre apenas uma certeza: a de que, "no centro de tudo, há um enorme vazio". Talvez por isso seja tão difícil. Porque, escrevendo, roçamos uma região misteriosa, onde se esgarçam as fronteiras entre realidade e sonho, onde lidamos com o desconhecido.
Certa vez um repórter perguntou a João Cabral de Melo Neto por que ele fazia poesia. Nelson Rodrigues, sabendo disso, ficou revoltado. "João Cabral faz poesia porque é poeta. Assim como a galinha põe ovos porque é galinha", disse. É verdade. Acho que escrevemos, todos nós, porque não podemos fazer outra coisa. Não por vaidade ou sonho ou vontade de permanecer -mas por puro instinto de sobrevivência. Não por coragem, mas por covardia.



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