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RODAPÉ
Eichmann em Buenos Aires
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Há um mês, Juan Gelman recebeu o prêmio Rainha Sofia de poesia ibero-americana, pelo conjunto de uma obra que tem
um equilíbrio raro de ousadia formal e compromisso social. Nessa
semana, o romancista Martín Kohan chega a São Paulo para lançar
"Duas Vezes Junho", seu primeiro livro publicado no Brasil. Em
comum entre ambos, além da nacionalidade, existe uma literatura
que não pode cancelar a memória
da tortura e dos desaparecimentos ocorridos durante a ditadura
que governou a Argentina de 1976
a 1982.
Nascido em 1930, Gelman participou do movimento guerrilheiro
Montoneros. Logo no primeiro
ano do governo militar, seus filhos Nora e Marcelo e a mulher
deste, María Claudia, foram seqüestrado pela forças de repressão. Nora sobreviveu. Marcelo e a
esposa foram levados ao Uruguai;
pouco antes de morrerem, ela deu
à luz uma criança que só seria
identificada em 2000.
Kohan, muito mais jovem, era
pré-adolescente por ocasião do
golpe. Mas a trama de seu livro gira, justamente, ao redor de um
episódio no qual uma jovem tem
um bebê numa pausa entre sessões de tortura. O foco de "Duas
Vezes Junho", entretanto, não é o
martírio da vítima, mas a consciência -ou, no caso, a inconsciência- de um cúmplice da violência que transformou o assassinato num ato corriqueiro, perfeitamente assimilado a um cotidiano sem culpas.
Poucos livros conseguem expressar de modo tão límpido a
noção de "banalidade do banal"
cunhada por Hannah Arendt em
"Eichmann em Jerusalém" -livro no qual a filósofa alemã analisou o processo do burocrata nazista que mandou milhares de judeus para as câmaras de gás.
No caso de "Duas Vezes Junho",
o Eichmann bonaerense veste a
farda de um soldado envolvido
em atividades comezinhas, que
trabalha como motorista de um
oficial e médico responsável por
administrar doses eficazes de tortura física e psicológica a presos
políticos.
É o soldado quem narra essa
história de perversão, mas ele está
de tal modo imerso em regras e ritos que não consegue perceber
sua servidão voluntária. E a perversão, aqui, consiste em aderir a
um regime de exceção que se
apropria dos princípios de representatividade do contrato social
para dar tons legalistas à negação
da sociabilidade.
O protagonista de "Duas Vezes
Junho" está alienado nos lemas e
desejos dos outros. Ao entrar para
o Exército, ouve os prudentes
conselhos do pai, que lhe mostra
os benefícios da nulidade ("Não é
preciso fazer como os judeus, que
sempre querem mostrar que sabem tudo").
E, uma vez engajado no serviço
militar, enquanto os gritos do recém-nascido ecoam da cela em
que a prisioneira implora sua piedade, ele se preocupa em corrigir
erros de grafia num comunicado
interno no qual um oficial pergunta a outro: "A partir de que
idade se pode começar a torturar
uma criança?"
A ação se dá em capítulos curtíssimos, como se a memória desses
momentos de violência só pudessem aflorar de modo descontínuo
e deformado. Daí os constantes
deslocamentos do tom da narrativa: protocolar ao descrever visitas
a um dos centros de detenção da
ditadura, o soldado adota uma retórica pseudofilosófica ao refletir
sobre o asseio do carro de seu superior, que conduz pela ruas de
Buenos Aires durante um jogo da
Copa de 78.
A metáfora futebolística, aliás,
amplifica o sentido da narrativa
de Kohan. As duas partes do livro
têm como pano de fundo derrotas
da seleção Argentina diante da
Itália: a primeira, durante o mundial conquistado sob o furor nacionalista da ditadura; a segunda,
na Copa de 82, no momento em
que a Guerra das Malvinas decretava o fim do período autoritário.
Entre esses dois momentos de
naufrágio simbólico, porém, os
algozes criados por Kohan permanecem indiferentes às suas
próprias perdas, ouvindo os jogos
pelo rádio e promovendo almoços amistosos em família -prontos para reviver o pesadelo.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Duas Vezes Junho
Autor: Martín Kohan
Tradução: Marcelo Barbão
Editora: Amauta
Quanto: R$ 25 (148 págs.)
Lançamento: quarta, às 19h30, na
livraria Cultura (av. Paulista, 2073, tel.
0/xx/11/3170-4033), em debate com a
participação da crítica Ana Cecilia Olmos
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