São Paulo, sábado, 04 de junho de 2005

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RODAPÉ

Eichmann em Buenos Aires

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Há um mês, Juan Gelman recebeu o prêmio Rainha Sofia de poesia ibero-americana, pelo conjunto de uma obra que tem um equilíbrio raro de ousadia formal e compromisso social. Nessa semana, o romancista Martín Kohan chega a São Paulo para lançar "Duas Vezes Junho", seu primeiro livro publicado no Brasil. Em comum entre ambos, além da nacionalidade, existe uma literatura que não pode cancelar a memória da tortura e dos desaparecimentos ocorridos durante a ditadura que governou a Argentina de 1976 a 1982.
Nascido em 1930, Gelman participou do movimento guerrilheiro Montoneros. Logo no primeiro ano do governo militar, seus filhos Nora e Marcelo e a mulher deste, María Claudia, foram seqüestrado pela forças de repressão. Nora sobreviveu. Marcelo e a esposa foram levados ao Uruguai; pouco antes de morrerem, ela deu à luz uma criança que só seria identificada em 2000.
Kohan, muito mais jovem, era pré-adolescente por ocasião do golpe. Mas a trama de seu livro gira, justamente, ao redor de um episódio no qual uma jovem tem um bebê numa pausa entre sessões de tortura. O foco de "Duas Vezes Junho", entretanto, não é o martírio da vítima, mas a consciência -ou, no caso, a inconsciência- de um cúmplice da violência que transformou o assassinato num ato corriqueiro, perfeitamente assimilado a um cotidiano sem culpas.
Poucos livros conseguem expressar de modo tão límpido a noção de "banalidade do banal" cunhada por Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém" -livro no qual a filósofa alemã analisou o processo do burocrata nazista que mandou milhares de judeus para as câmaras de gás.
No caso de "Duas Vezes Junho", o Eichmann bonaerense veste a farda de um soldado envolvido em atividades comezinhas, que trabalha como motorista de um oficial e médico responsável por administrar doses eficazes de tortura física e psicológica a presos políticos.
É o soldado quem narra essa história de perversão, mas ele está de tal modo imerso em regras e ritos que não consegue perceber sua servidão voluntária. E a perversão, aqui, consiste em aderir a um regime de exceção que se apropria dos princípios de representatividade do contrato social para dar tons legalistas à negação da sociabilidade.
O protagonista de "Duas Vezes Junho" está alienado nos lemas e desejos dos outros. Ao entrar para o Exército, ouve os prudentes conselhos do pai, que lhe mostra os benefícios da nulidade ("Não é preciso fazer como os judeus, que sempre querem mostrar que sabem tudo").
E, uma vez engajado no serviço militar, enquanto os gritos do recém-nascido ecoam da cela em que a prisioneira implora sua piedade, ele se preocupa em corrigir erros de grafia num comunicado interno no qual um oficial pergunta a outro: "A partir de que idade se pode começar a torturar uma criança?"
A ação se dá em capítulos curtíssimos, como se a memória desses momentos de violência só pudessem aflorar de modo descontínuo e deformado. Daí os constantes deslocamentos do tom da narrativa: protocolar ao descrever visitas a um dos centros de detenção da ditadura, o soldado adota uma retórica pseudofilosófica ao refletir sobre o asseio do carro de seu superior, que conduz pela ruas de Buenos Aires durante um jogo da Copa de 78.
A metáfora futebolística, aliás, amplifica o sentido da narrativa de Kohan. As duas partes do livro têm como pano de fundo derrotas da seleção Argentina diante da Itália: a primeira, durante o mundial conquistado sob o furor nacionalista da ditadura; a segunda, na Copa de 82, no momento em que a Guerra das Malvinas decretava o fim do período autoritário.
Entre esses dois momentos de naufrágio simbólico, porém, os algozes criados por Kohan permanecem indiferentes às suas próprias perdas, ouvindo os jogos pelo rádio e promovendo almoços amistosos em família -prontos para reviver o pesadelo.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Duas Vezes Junho
    
Autor: Martín Kohan
Tradução: Marcelo Barbão
Editora: Amauta
Quanto: R$ 25 (148 págs.)
Lançamento: quarta, às 19h30, na livraria Cultura (av. Paulista, 2073, tel. 0/xx/11/3170-4033), em debate com a participação da crítica Ana Cecilia Olmos


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