São Paulo, Sexta-feira, 04 de Junho de 1999
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RECEITAS DO MELLÃO
Manoel nos ensina a galinha cabidela

HAMILTON MELLÃO JUNIOR
Colunista da Folha

O paulistano é um expansivo de padaria. Entre médias e pães na chapa, ele se mimetiza com balconistas e frequentadores, sem distinção de classe, numa cumplicidade que o torna íntimo provisório em segundos.
Ri, mostrando todas as suas pontes e obturações, discute futebol, novelas e banalidades, despede-se e, à luz do sol, retoma a persona argentária e a simpatia estritamente mercantil -recursos imprescindíveis para sobreviver nesta terra de bravos.
Ontem, vimos o proprietário da panificadora Flor do Minho, seu Manoel (desculpem o lugar-comum, mas o nome é esse mesmo), batendo na testa e dizendo: "Ai, há quanto tempo não como; ai, há quanto tempo não como...", sugerindo uma clássica piada de português.
Enquanto os outros riam e ele se ruborizava pela indiscrição de ter pensado alto, achei que o assunto poderia ser gastronômico.
Sempre o tive como reservado e, confesso, tinha pudores de palrear com ele. Mas, num misto de curiosidade e compaixão, cheguei até o balcão. Puxando assunto, ele me contou, melancólico (e como pode ser melancólico um português!): "Há 25 anos que não como uma cabidela de galinha à Moçambique. Que falta me faz o Telefone, o Relógio e, especialmente, a Geladeira". Sem entender, retruquei: "Mas, Manoel, tem tudo isso aqui". É que eu não imaginava que "estes eram os nomes dos meus criados lá em Lourenço Marques. Tinha seis, mas a Geladeira era a melhor cozinheira da cidade. E como me esquentava de noite! Os cubanos me tiraram tudo e nem me deixaram trazer a Geladeira!".
Sem mais, a conversa voltou à galinha: "Deve ser bem gorda. As pretas são as melhores. Tira-se as penugens do pescoço e sente-se, com os dedos, a jugular. Num corte de aço fino, sangra-se numa vasilha com vinagre para não coagular". Seus olhos começam a marejar. Sem jeito, resolvi me despedir. Saí, mas ele me chamou de volta e, numa improvável generosidade, me deu um saco cheio de sonhos.
Olho para eles agora. Não comi nenhum. São simples sonhos de que talvez, um dia, possamos ter a sabedoria de perceber, respeitar e aprender com a vivência do ilustre passageiro que viaja ao nosso lado.


Galinha cabidela à Moçambique. Ingredientes: 1 galinha, 1 colher de sopa de vinagre, 2 colheres de sopa de vinho branco, 2 cebolas médias, 2 dentes de alho, 60 g de banha, 50 g de margarina, 1 ramo de salsa, 1 folha de louro, sal e pimenta. Preparo: Mata-se a galinha e aproveita-se o sangue, que se apara para uma tigela onde já estão o vinho e o vinagre. Mexe-se para não coagular. Corta-se a galinha aos bocados, depois de previamente amanhecida e tempera-se com sal e pimenta. Deitam-se as gorduras num tacho com as cebolas cortadas em rodelas, os dentes de alho picado, o louro, a salsa picada e a galinha. Deixa-se corar de todos os lados, acrescentam-se golinhos de água e deixa-se cozer. Na altura de servir, adiciona-se o sangue, mexendo bem. Serve-se com arroz cozido em leite de coco.


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