São Paulo, Sexta-feira, 04 de Junho de 1999
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"Teatro?" seria perfeito como disco solo do artista

da Reportagem Local

É um caso raro de simbiose. A indústria e os colegas de João Ricardo o tratam como se fosse um leproso. Mas, em contrapartida, ele também trata a indústria e seus colegas como se fossem leprosos.
Pode parecer macabro dizer, mas é uma relação bacana. Mostra que arte e indústria não são equivalentes e que, às vezes, um não sabe encarar o outro. Produz faísca.
"Teatro?", produzido toscamente, faz faísca. Não é destinado à indústria, e de dentro dela nunca será compreendido. É mais um fiozinho de uma história muito louca.
Juntos, Secos & Molhados foram uma bomba atômica. A estréia, com obras-primas de afronta sexual ("Assim, Assado", "Sangue Latino", "O Vira", "El Rey", a monumental "Primavera nos Dentes"), foi o primeiro LP brasileiro de saída do armário. O segundo "S&M" tentava mascarar o tom de acinte sexual e significou a hecatombe -do grupo e de algumas de suas identidades individuais.
Ney Matogrosso seguiu carreira dirigida a esmo; Gerson Conrad ainda gravou com Zezé Motta, mas desapareceu; os periféricos Marcelo Frias e Willi Verdaguer, ex-integrantes dos Beat Boys (banda argentina que acompanhara Caetano em "Alegria, Alegria"), sumiram do mapa; João virou leproso.
Este tornou-se um obcecado pela idéia S&M. Como tal, criou três discos solo encharcados de mágoa, vociferantes contra o ex-amigo.
"João Ricardo" (75), o da surreal capa bicha cor-de-rosa, talvez até pelo tanto de mágoa exposta, é uma obra-prima da música pop brasileira. Traz letras inspiradas, "Vira Safado", timing, rock'n'roll.
Foi, como seus sucessores, regurgitado pela indústria. Hoje, influenciam o imaginário de artistas como Zeca Baleiro -dos poucos, na indústria, a citar João.
O insucesso levou às tentativas anedóticas de ressurreição. João nivelou seu conjunto a outro de trajetória similar, embora de importância muito menor, o RPM. Fez-se um Paulo Ricardo glitter, embatucado na autoparódia.
Solitário, tenta outra volta. À aparência (mas só à aparência), mais liberto das obsessões anteriores, "Teatro?" é um CD solo de João, não um dos S&M. Poderia ser de seus bons trabalhos solo.
A verve é de roqueiro -prejudicado pela paupérrima produção, que seca o disco em onipresença de guitarras. As referências -Sonic Youth, Jesus and Mary Chain- são abertas ao tempo, menos datadas que às que seus colegas de indústria se prendem.
Da pobreza, saltam grandes instantes -"Teatro?", "Puta" e a muito paródica "Rosinha, a Vermelha", "Dura Aquilo Que Passar pelo Tempo Que Durar". São arte crua, ácida, anti-industrial.
Sincero desastrado, entra o CD se expondo, em "Tom de Dó": "É verdade, eu inventei agora/ a verdade pra quem está por fora". Continua tentando criar uma tal "verdade" individual, extrapolável -e inaudível, que nunca emplaca. É a conturbada contribuição de João Ricardo.
(PAS)


Avaliação:


Disco: Teatro?
Com: Secos & Molhados
Quanto: R$ 18, em média; vendas pela Internet (secosemolhados@yahoo.com) ou pelo tel. (011) 9101-6660



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