|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Carta de mulher com calvário e retorno
A letra é de mulher. Pela
transparência do envelope adivinho que lá dentro vem um
santinho. Abro com cuidado,
há um bilhete. E o santinho cai
na mesa. É uma estampa antiga, no estilo das gravuras francesas, uma cor sépia que lembra os postais dos tempos de
Proust.
O título é óbvio: "Le Retour
du Calvaire". Olho a imagem:
no primeiro plano, Maria amparada pelo discípulo João;
mais atrás, Madalena, os cabelos ainda cheirando ao óleo
com que untou os pés do seu
Mestre. Ao fundo, a silhueta
que a cristandade conserva na
retina de seus filhos e no marco
de sua história: as três cruzes
agora nuas. Os corpos foram
descidos, a tarde de Páscoa começara, e não era costume deixar sinais de castigo maculando a grande noite que chegava.
Vistas à distância, as três cruzes parecem iguais. Em duas
delas morreram dois ladrões.
Na outra, morrera um alucinado que o procurador romano
de plantão ironicamente nomeara rei dos judeus.
O monte está vazio e calvo,
como convém a seu nome: Calvário. As cruzes abandonadas
destacam-se num céu áspero,
não há nem sequer aquelas nuvens pesadas que os pintores,
da Renascença em diante, colocaram sobre o monte, para
anunciar a cólera da natureza
pela morte de um justo.
Maria, João e Madalena voltam para os dias que se seguirão, agora sem a presença do filho e do amigo. Na estampa, os
três são pequenos demais para
compreender o que acabara de
acontecer. Um Deus poderia
morrer assim? Viram seu sangue, os joelhos feridos, as chagas abertas, ouviram os gemidos, a voz agoniada pela sede, o
grito na hora da morte, a carne
exposta, cordeiro depois do sacrifício.
A morte -e mais do que a
morte, a longa paixão que se
arrastara por tantas horas-
tornou inútil a revolta. O cadáver, que havia pouco fora arrancado da cruz, era muito deles, muito pessoal e intransferível para ser repartido na dor
comum da cristandade inteira,
que mais tarde compreenderia
o drama -e o adoraria como o
momento supremo de sua história.
A dor era muito deles também, para ser repartida em séculos e consolada em catedrais.
Para Maria, o filho morrera como morrem os filhos diante das
mães. E ela restou, desamparada e impotente diante da morte
e do amor. Talvez trocasse -se
pudesse- seu formidável destino pela renúncia: qualquer
mãe hesitaria entre a Redenção e o filho. E ela não seria
culpada se, diante da cruz, preferisse o filho vivo em seus braços a toda a Humanidade redimida à custa do sangue que ela
gerara.
Essas considerações chegaram com a estampa em tom sépia que caiu na minha mesa.
Olho o envelope: letra de mulher, sem dúvida. Letra e modo.
Por que uma mulher me mandara aquilo? Viro o santinho.
No verso, encontro a mesma
caligrafia do envelope: "Minha
dor continua recente. Senti a
sua mão sobre minha cabeça
numa crônica que me surpreendeu: como pode um ateu
compreender a ausência do
amor? Mesmo assim, obrigado
pela sua presença".
Não há assinatura. Faço um
exame de consciência e de arquivo para tentar localizar a
crônica citada, acho que houve
um engano, examino a letra
daquela mulher, deve ser ainda
jovem, jovem é sua amargura,
jovem é sua esperança. Confiro
mais uma vez o envelope, sim,
nome e endereço são meus.
Havia esquecido o bilhete,
que também caíra com o santinho. São poucas palavras num
papel de carta com flores ladeando as margens. É um trecho da "Paixão Segundo São
Mateus", em latim e alemão,
com a indicação de um CD com
a música do oratório homônimo de Bach. Muito mistério para um pobre incréu.
Reviro a bilhete. Como nada
mais descubro, olho novamente a estampa: "O Retorno do
Calvário". Sempre me impressionaram os retornos: os retornos das férias, os retornos da
vida, a morte sem retorno.
Lembro de um vizinho que perdeu a mulher, chamava-se
Ema, como a Bovary, tinha fama de trair o marido, morrera
tísica -era comum atribuir a
doença ao excesso de fornicação.
Juntei-me aos moleques da
rua para apreciar o enterro. Ao
final da tarde, vi o homem chegar, despejado de um táxi, sozinho, amarrotado, os olhos lá
no fundo, imensos, queimados
pela falta de lágrimas. Imaginei sua solidão na mesma casa,
na mesma cama onde a mulher
vivera, amara, pecara e morrera.
Passei a noite acordado, pensando não na morte daquela
mulher, mas no retorno daquele homem. Em sua solidão repartida com fantasmas que
nunca o abandonariam.
Como todo mundo, tenho
meus retornos. Não posso exagerar: não há nenhum calvário
na minha biografia, daí que
meus retornos são menos dramáticos. Mesmo assim, não
deixam de doer quando penso
neles. Há a silhueta de algumas
cruzes nesse horizonte que ficou para trás, cada vez mais
vasto e imponderável. Não são
cruzes anônimas: têm nomes e,
em algumas delas, há um rosto
e um corpo que amei.
Não sei o nome da mulher
que me escreveu. Mesmo assim
agradeço o santinho. Não tenho livro de orações para com
ele marcar uma página e uma
prece. Mas um dia, talvez, eu
precisarei dele. E é bom saber
que houve alguém que me ajudou nesse retorno.
Texto Anterior: Ricardo Castro prova sua maturidade com Chopin Próximo Texto: Violência: EUA pesquisam Hollywood Índice
|