São Paulo, Sexta-feira, 04 de Junho de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
Carta de mulher com calvário e retorno


A letra é de mulher. Pela transparência do envelope adivinho que lá dentro vem um santinho. Abro com cuidado, há um bilhete. E o santinho cai na mesa. É uma estampa antiga, no estilo das gravuras francesas, uma cor sépia que lembra os postais dos tempos de Proust.
O título é óbvio: "Le Retour du Calvaire". Olho a imagem: no primeiro plano, Maria amparada pelo discípulo João; mais atrás, Madalena, os cabelos ainda cheirando ao óleo com que untou os pés do seu Mestre. Ao fundo, a silhueta que a cristandade conserva na retina de seus filhos e no marco de sua história: as três cruzes agora nuas. Os corpos foram descidos, a tarde de Páscoa começara, e não era costume deixar sinais de castigo maculando a grande noite que chegava.
Vistas à distância, as três cruzes parecem iguais. Em duas delas morreram dois ladrões. Na outra, morrera um alucinado que o procurador romano de plantão ironicamente nomeara rei dos judeus.
O monte está vazio e calvo, como convém a seu nome: Calvário. As cruzes abandonadas destacam-se num céu áspero, não há nem sequer aquelas nuvens pesadas que os pintores, da Renascença em diante, colocaram sobre o monte, para anunciar a cólera da natureza pela morte de um justo.
Maria, João e Madalena voltam para os dias que se seguirão, agora sem a presença do filho e do amigo. Na estampa, os três são pequenos demais para compreender o que acabara de acontecer. Um Deus poderia morrer assim? Viram seu sangue, os joelhos feridos, as chagas abertas, ouviram os gemidos, a voz agoniada pela sede, o grito na hora da morte, a carne exposta, cordeiro depois do sacrifício.
A morte -e mais do que a morte, a longa paixão que se arrastara por tantas horas- tornou inútil a revolta. O cadáver, que havia pouco fora arrancado da cruz, era muito deles, muito pessoal e intransferível para ser repartido na dor comum da cristandade inteira, que mais tarde compreenderia o drama -e o adoraria como o momento supremo de sua história.
A dor era muito deles também, para ser repartida em séculos e consolada em catedrais. Para Maria, o filho morrera como morrem os filhos diante das mães. E ela restou, desamparada e impotente diante da morte e do amor. Talvez trocasse -se pudesse- seu formidável destino pela renúncia: qualquer mãe hesitaria entre a Redenção e o filho. E ela não seria culpada se, diante da cruz, preferisse o filho vivo em seus braços a toda a Humanidade redimida à custa do sangue que ela gerara.
Essas considerações chegaram com a estampa em tom sépia que caiu na minha mesa. Olho o envelope: letra de mulher, sem dúvida. Letra e modo. Por que uma mulher me mandara aquilo? Viro o santinho. No verso, encontro a mesma caligrafia do envelope: "Minha dor continua recente. Senti a sua mão sobre minha cabeça numa crônica que me surpreendeu: como pode um ateu compreender a ausência do amor? Mesmo assim, obrigado pela sua presença".
Não há assinatura. Faço um exame de consciência e de arquivo para tentar localizar a crônica citada, acho que houve um engano, examino a letra daquela mulher, deve ser ainda jovem, jovem é sua amargura, jovem é sua esperança. Confiro mais uma vez o envelope, sim, nome e endereço são meus.
Havia esquecido o bilhete, que também caíra com o santinho. São poucas palavras num papel de carta com flores ladeando as margens. É um trecho da "Paixão Segundo São Mateus", em latim e alemão, com a indicação de um CD com a música do oratório homônimo de Bach. Muito mistério para um pobre incréu.
Reviro a bilhete. Como nada mais descubro, olho novamente a estampa: "O Retorno do Calvário". Sempre me impressionaram os retornos: os retornos das férias, os retornos da vida, a morte sem retorno. Lembro de um vizinho que perdeu a mulher, chamava-se Ema, como a Bovary, tinha fama de trair o marido, morrera tísica -era comum atribuir a doença ao excesso de fornicação.
Juntei-me aos moleques da rua para apreciar o enterro. Ao final da tarde, vi o homem chegar, despejado de um táxi, sozinho, amarrotado, os olhos lá no fundo, imensos, queimados pela falta de lágrimas. Imaginei sua solidão na mesma casa, na mesma cama onde a mulher vivera, amara, pecara e morrera.
Passei a noite acordado, pensando não na morte daquela mulher, mas no retorno daquele homem. Em sua solidão repartida com fantasmas que nunca o abandonariam.
Como todo mundo, tenho meus retornos. Não posso exagerar: não há nenhum calvário na minha biografia, daí que meus retornos são menos dramáticos. Mesmo assim, não deixam de doer quando penso neles. Há a silhueta de algumas cruzes nesse horizonte que ficou para trás, cada vez mais vasto e imponderável. Não são cruzes anônimas: têm nomes e, em algumas delas, há um rosto e um corpo que amei.
Não sei o nome da mulher que me escreveu. Mesmo assim agradeço o santinho. Não tenho livro de orações para com ele marcar uma página e uma prece. Mas um dia, talvez, eu precisarei dele. E é bom saber que houve alguém que me ajudou nesse retorno.


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