São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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ARTES VISUAIS

José Bernnô utiliza a experiência adquirida em oficina para criar trabalhos elogiados no mundo das artes

Pintor de carros vira artista plástico

Eduardo Knapp/Folha Imagem
O pintor José Noberto de Mattos, em sua oficina no bairro paulistano do Limão, ao lado de suas pinturas geométricas


MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1987, no 5º Salão Paulista de Artes Plásticas, o pintor de automóveis José Norberto de Mattos, então com 36 anos, parou diante de uma tela de Paulo Pasta e viu nela uma esfinge. "O que será que esse cara pensava quando pintou isso?", era sua dúvida diante de três ogivas avermelhadas.
Pintores de carro não costumam ver esfinges em obras de arte contemporânea, mas ele não era um pintor de carros qualquer. Cursara a Escola de Belas Artes, mas isso não o ajudara muito a entender a pintura contemporânea. Os quadros que pintava só eram aceitos pelos salões de arte de cidades do interior paulista.
Direto ao ponto: enquanto sua fama como autor de pintura especiais para carros e caminhões só crescia, ele era ignorado como pintor de telas. Agora, sua sorte inverteu-se: recebe elogios de pintores como Paulo Pasta e Marco Giannotti.
Mattos, que pinta desde 1986, diz que sua sina começou a mudar quando encontrou o autor do quadro que o levara a se perguntar o que pensa um pintor quando pinta ogivas avermelhadas: o próprio Paulo Pasta.
Num curso de pintura no Sesc em 2001, 15 anos após o advento do quadro-esfinge, Pasta mostrou-lhe que a pintura contemporânea habita um mundo próprio, no qual a perspectiva e o naturalismo não são mais questões. "Esse curso mudou minha vida", diz José Bernnô, nome que adotou no mundo da arte.
Bernnô, 55, nasceu numa família "pobre", como ele descreve, no mesmo bairro em que vive até hoje -o Limão, uma área de classe média baixa na zona norte de São Paulo. O pai era cabeleireiro, e a mãe, manicure. Foi a mãe que decidiu colocá-lo no Senai (Serviço Nacional da Indústria) num curso de mecânica de automóveis. Nos anos 70, trabalhou como alinhador de rodas no Rodão e numa concessionária Gordini-Willys.
Não virou operário-padrão porque tinha outros interesses. Como o pai era músico, aprendeu a tocar baixo e, entre 1968 e 1971, era um dos cabeludos do Kreptos Credus, "a melhor banda de rock entre o Limão, a Freguesia, o Mandaqui e a Barra Funda", como a define. Sonhavam ser os Mutantes, mas tocavam "covers" de Black Sabbath, Deep Purple e Rolling Stones na época em que "cover" não se chamava "cover".
Os shows eram turbinados por um coquetel de "drugstore cowboy" -Perventin e Dexamil (dois tipos de anfetamina) e maconha.

Alegria clandestina
O mais inusitado de sua trajetória é que mecânicos do Senai não costumam se interessar por pintura contemporânea, muito menos integrar a cena. Há uma espécie de cordão sanitário a isolar a arte contemporânea de quem é de classe média para baixo, parecido com as marcas do sotaque na Inglaterra -se você não falar de uma certa maneira, está fora.
"A pintura para ele é um gozo. Tem uma força e uma alegria porque ele não entra nas questões culturais. Parece um acerto de contas com ele mesmo. É a alegria de descobrir a pintura e de fazer", afirma Pasta, que dá aulas para ele no Instituto Tomie Ohtake.
Essa alegria vem de duas fontes, segundo Pasta. A primeira é o universo que Bernnô leva para as telas -casas coloridas, portões e barracões do bairro onde mora. Esse viés, para Pasta, o aproxima de Alfredo Volpi (1896-1988), que começou a carreira como pintor decorativo.
"Ele consegue ver alegria nessa arquitetura meio mal-ajambrada dos mais pobres. É uma alegria meio clandestina, porque a arte contemporânea não permite muito esse tipo de sentimento."
A segunda fonte de alegria é que o desencanto e uma certa decepção com a pintura -uma das questões dos pintores contemporâneos- não fazem parte do seu horizonte; ele transforma o desconhecimento em vantagem.
Giannotti, professor da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP e da Oficina Virgílio, onde deu aulas para Bernnô, diz que ele rompeu a barreira de classe que cerca a arte contemporânea não por ser uma curiosidade antropológica, mas pela força de sua pintura. "No momento em que ele incorporou o mundo do pintor de carros, o trabalho dele mudou. Ele introduziu a precariedade na sua poética sem cair na ilustração", detalha Giannotti.
A precariedade veio do material que Bernnô passou a usar -papelão, reciclado das caixas que embalam as peças que usa na funilaria. Eles são a base para uma mistura que inclui tinta automotiva, tinta a óleo e cera de abelha.
Bernnô colocou seus dois filhos para tocar a oficina, cada vez mais dedica-se à arte, mas não arreda pé do negócio de pintura de carros: "Tudo que tenho, até os estudos de arte, conquistei com essa oficina. Ela é a minha primeira preocupação", frisa.
Para um iniciante no mundo da arte contemporânea, ele vai bem: já vendeu um tríptico da nova fase por R$ 8.000 e foi selecionado por dois críticos conhecidos (Felipe Chaimovitch, que escreve na Folha, e Cauê Alves) para o programa de exposições de Ribeirão Preto.
Ele tem ambições nada modestas. "Quero ter as cores do Volpi e a expressão do Iberê Camargo", diz, referindo-se a dois dos maiores pintores brasileiros.
Para esclarecer a dúvida que perseguiu Bernnô por 14 anos, Pasta diz que não pensava em nada quando pintou as ogivas avermelhadas. Elas apareceram, lembra, quando raspava uma pintura. Só depois pensou que elas "eram uma vontade de se apoderar da pintura, já que as ogivas existem desde o começo da arte. Aquele rastro mostrava uma juventude que queria ser pintor".
Bernnô, talvez, tenha visto na tela um espelho.


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