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RECEITAS DO MELLÃO
Impávidos companheiros de copo
HAMILTON MELLÃO JR.
COLUNISTA DA FOLHA
Eram quatro amigos,
quatro bons camaradas.
Cresceram juntos, estudaram,
namoraram, casaram e descasaram quase ao mesmo tempo.
E, agora, sozinhos e cansados
da vida, pois só quem viveu sabe o quanto a vida cansa, dedicam-se a sofrer unidos.
Toda sexta, entravam no carro de um e rumavam para o sítio de algum, em São Roque. No
primeiro fim-de-semana, findos infindos copos de cerveja,
houve a constatação da mais vilã das certezas: a fome brutal,
inexorável e absoluta.
Diante de um frango mais
boêmio, os jejunos das lides domésticas julgaram ter encontrado
a solução. Assaram-no com penas
e tudo, e o resultado foi tão cruel
que quase naufragaram entre lágrimas e corizas, clamando pela
comidinha das ex-mulheres.
Com o tempo, foram se equipando. Já grelhavam picanhas e
linguiças, rindo da alcançada auto-suficiência. Num crescendo, os
quatro se tornaram felizes (e gordos) gourmets...
Seguros da própria habilidade,
decidiram que era chegada a hora
de fazer um dos pratos de técnica
mais refinada do mundo: o peru
recheado à Rossini. Abro um parêntesis e explico: esse peru é recheado com fígado fresco de ganso e trufas brancas recém-colhidas em Alba, vindas por avião. É a
prova irrefutável da existência de
Deus. Dizem que Rossini só chorou duas vezes durante sua vida:
quando ouviu os estrondosos
aplausos na estréia de "O Barbeiro de Sevilha" e quando o bote em
que ele estava virou e ele ainda
não havia dado nenhuma garfada
na dita cuja ave.
Depois de um longo périplo, encontraram uma no mercado de
Pinheiros. Ela ostentava a crista
de um ex-sultão, embora estivesse
confinada numa ridícula e acanhada gaiola.
Os amigos e o peru rumaram
imediatamente para o sítio em
frenesi pré-gustativo. Mas, como
dizia o grande Rosa, "no começo
de tudo sempre tem um erro".
Ansiosos, os ex-tristes começaram a beber buscando inspiração
para sua mais ousada empreitada.
Em meio à ebriedade, surgiu a cizânia: o que o peru deveria beber?
Armanhaque, conhaque ou pinga? Como um rastilho, a discussão reacendeu convicções MR9,
Libelu e albaneses puros criando
mais um debate bizantino, enquanto eu, apolítico convicto, e o
peru, aparentemente também,
observávamos impávidos.
Nunca mais os vi, mas tenho
agora um grande amigo e companheiro de copo. Deitado na rede,
leio para ele "Da Amizade", de
Montaigne, enquanto o peru me
vigia aprovativo e cambaleante.
E-mail - mellao@uol.com.br
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