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CARLOS HEITOR CONY
Tempo dos tópicos e das tainhas podres
Eu não sabia o que era um
tópico. Volta e meia lia numa
embalagem de remédio: "Para
uso tópico". Tinha vaga noção do
que era aquilo, geralmente se tratava de uma pomada para passar
num lugar machucado. Como entender o que seria um tópico
quando, no início da carreira de
jornalista, ouvi um colega mais
experimentado berrar para um
guarda de trânsito:
- Vou fazer um tópico!
Era um profissional famoso,
abria portas, fechava outras, temido pela virulência de seu estilo e
pela complacência de suas idéias.
Eu o admirava porque vivia uma
fase em que admirava tudo, ou
quase tudo, no mundo que eu renegara junto com o diabo e a carne e voltava a ele, mundo. (A carne e o diabo vieram de volta, também, mas de cambulhada.)
Mal saído do seminário, sabendo latim, recitando Ovídio -o
poeta dos amores- para uma namorada que preferia J.G. de Araújo Jorge, que estava em moda, eu
ficava pasmo com a truculência
do colega mais velho, sua descomunal capacidade de atemorizar
porteiros de cinema, caixas de
banco, contínuos de repartições,
enfim, qualquer cidadão que o
atrapalhasse em sua jucunda fome de viver acima e além da lei geral e necessária. "Vou fazer um tópico!" O que seria isso? O mais assombroso é que o pessoal ameaçado vergava a espinha, borrava-se diante da iminência do tópico,
fosse o que fosse um tópico. Por
ironia do destino e do ofício, pouco mais tarde, já em outro jornal,
fui destacado para fazer tópicos,
antes de passar aos editoriais, que
ainda se chamavam "artigos de
fundo".
Para quem não sabe, em gíria de
redação, tópico é um artigo de
fundo compacto, de cinco ou seis
linhas, cinco ou seis deles enchiam a página de opinião dos
jornais de antanho. Alguns desses
jornais tinham a fama de derrubar ministérios inteiros com um
simples tópico. Um tópico consagrava um gênio e condenava um
celerado. Nada nem ninguém resistia a um tópico.
Um dos mais famosos, por sinal, foi escrito por um amigo querido, o Armando Miceli, que era
lacerdista e detestava o Juscelino
Kubitschek, então presidente da
República. Acontece que um primo presidencial foi nomeado para um cargo importante e Miceli
escreveu esta obra-prima: "O presidente da República nomeou ontem um sr. Kubitschek para diretor da autarquia X. Este nome
(Kubitschek) não nos é estranho".
O fato é que, calouro na carreira
que abraçaria por acaso e sem vocação, ficava pasmo (como disse
acima) com a demolição que um
tópico podia causar na sociedade
humana. Não compreendia bem
como as coisas funcionavam. Jornais imponentes, vestais históricos, guardiões da nacionalidade e
da moral pública, todos os dias
publicavam tópicos contra o manobreiro da água que deixara a
rua tal sem o chamado precioso líquido. Ou contra o açougueiro
que vendera carne de segunda como de primeira. Os editoriais
eram a mesma coisa, só que endereçados aos grandes deste mundo, ministros, congressistas, empresários. O baixo clero abastecia
os tópicos.
Estreei no ofício de fazedor de
tópicos de forma sensata -sensatez que não mantive nos anos
seguintes. E sem interesse pessoal
pelo caso. Um amigo do redator-chefe entrou pela redação com
uma tainha embrulhada numa folha de jornal.
Fui chamado para ver aquilo
que o jornal chamava de "escândalo do dia". O sujeito comprara a
tainha no Mercado Municipal,
que havia na praça 15, famoso por
ser todo de ferro, ferro ilustre de
fornos belgas, e por vender peixes
frescos, siris, mexilhões, ostras,
aquilo que os franceses poeticamente chamam de "frutos do
mar".
Mas a tainha em causa e em cima da mesa do redator-chefe não
estava fresca. Direi em abono da
verdade: estava mais do que suspeita. Embora nunca tivesse visto
uma tainha até então (o Zé Serra
só viu vaca depois de adulto e ministro), eu não precisava entender
do assunto para constatar o escândalo do dia. A tainha estava escrachadamente podre. Urgia um
tópico escrachante.
Recusei aproximar o nariz da
tainha -coisa que todo mundo
fez- para que não houvesse dúvida sobre a malignidade do produto. Recebi a consagradora missão de demolir a desfaçatez criminosa do mercado que vendia tainhas podres.
Era mais ou menos como fazer
um soneto. Em vez dos 14 versos,
teria de desovar apenas seis linhas, contundentes, que fizessem
tremer os vendedores de tainhas
podres e, por tabela, todos os gananciosos que atentam contra a
saúde pública.
Não guardei a preciosidade. Para ser franco, ninguém se entusiasmou com ela. Foi publicada
porque, naquele dia, não houve
escândalo maior ou equivalente
ao da tainha podre. Meu tópico
não fez tremer os alicerces do
mercado, nem o mercado genérico do comércio humano nem o
do Mercado Municipal, que era
todo de ferro fundido na Bélgica,
um dos orgulhos do Rio daquela
época.
Creio que, a partir daquele histórico dia, os tópicos começaram
a ser menos eficientes. Tainhas
podres continuam por aí, os tópicos da imprensa perderam o poder de fogo, foram substituídos
pelas CPIs, que, embora temidas,
são facilmente evitadas.
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