São Paulo, sexta-feira, 04 de agosto de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
Tempo dos tópicos e das tainhas podres

Eu não sabia o que era um tópico. Volta e meia lia numa embalagem de remédio: "Para uso tópico". Tinha vaga noção do que era aquilo, geralmente se tratava de uma pomada para passar num lugar machucado. Como entender o que seria um tópico quando, no início da carreira de jornalista, ouvi um colega mais experimentado berrar para um guarda de trânsito:
- Vou fazer um tópico!
Era um profissional famoso, abria portas, fechava outras, temido pela virulência de seu estilo e pela complacência de suas idéias. Eu o admirava porque vivia uma fase em que admirava tudo, ou quase tudo, no mundo que eu renegara junto com o diabo e a carne e voltava a ele, mundo. (A carne e o diabo vieram de volta, também, mas de cambulhada.)
Mal saído do seminário, sabendo latim, recitando Ovídio -o poeta dos amores- para uma namorada que preferia J.G. de Araújo Jorge, que estava em moda, eu ficava pasmo com a truculência do colega mais velho, sua descomunal capacidade de atemorizar porteiros de cinema, caixas de banco, contínuos de repartições, enfim, qualquer cidadão que o atrapalhasse em sua jucunda fome de viver acima e além da lei geral e necessária. "Vou fazer um tópico!" O que seria isso? O mais assombroso é que o pessoal ameaçado vergava a espinha, borrava-se diante da iminência do tópico, fosse o que fosse um tópico. Por ironia do destino e do ofício, pouco mais tarde, já em outro jornal, fui destacado para fazer tópicos, antes de passar aos editoriais, que ainda se chamavam "artigos de fundo".
Para quem não sabe, em gíria de redação, tópico é um artigo de fundo compacto, de cinco ou seis linhas, cinco ou seis deles enchiam a página de opinião dos jornais de antanho. Alguns desses jornais tinham a fama de derrubar ministérios inteiros com um simples tópico. Um tópico consagrava um gênio e condenava um celerado. Nada nem ninguém resistia a um tópico.
Um dos mais famosos, por sinal, foi escrito por um amigo querido, o Armando Miceli, que era lacerdista e detestava o Juscelino Kubitschek, então presidente da República. Acontece que um primo presidencial foi nomeado para um cargo importante e Miceli escreveu esta obra-prima: "O presidente da República nomeou ontem um sr. Kubitschek para diretor da autarquia X. Este nome (Kubitschek) não nos é estranho".
O fato é que, calouro na carreira que abraçaria por acaso e sem vocação, ficava pasmo (como disse acima) com a demolição que um tópico podia causar na sociedade humana. Não compreendia bem como as coisas funcionavam. Jornais imponentes, vestais históricos, guardiões da nacionalidade e da moral pública, todos os dias publicavam tópicos contra o manobreiro da água que deixara a rua tal sem o chamado precioso líquido. Ou contra o açougueiro que vendera carne de segunda como de primeira. Os editoriais eram a mesma coisa, só que endereçados aos grandes deste mundo, ministros, congressistas, empresários. O baixo clero abastecia os tópicos.
Estreei no ofício de fazedor de tópicos de forma sensata -sensatez que não mantive nos anos seguintes. E sem interesse pessoal pelo caso. Um amigo do redator-chefe entrou pela redação com uma tainha embrulhada numa folha de jornal.
Fui chamado para ver aquilo que o jornal chamava de "escândalo do dia". O sujeito comprara a tainha no Mercado Municipal, que havia na praça 15, famoso por ser todo de ferro, ferro ilustre de fornos belgas, e por vender peixes frescos, siris, mexilhões, ostras, aquilo que os franceses poeticamente chamam de "frutos do mar".
Mas a tainha em causa e em cima da mesa do redator-chefe não estava fresca. Direi em abono da verdade: estava mais do que suspeita. Embora nunca tivesse visto uma tainha até então (o Zé Serra só viu vaca depois de adulto e ministro), eu não precisava entender do assunto para constatar o escândalo do dia. A tainha estava escrachadamente podre. Urgia um tópico escrachante.
Recusei aproximar o nariz da tainha -coisa que todo mundo fez- para que não houvesse dúvida sobre a malignidade do produto. Recebi a consagradora missão de demolir a desfaçatez criminosa do mercado que vendia tainhas podres.
Era mais ou menos como fazer um soneto. Em vez dos 14 versos, teria de desovar apenas seis linhas, contundentes, que fizessem tremer os vendedores de tainhas podres e, por tabela, todos os gananciosos que atentam contra a saúde pública.
Não guardei a preciosidade. Para ser franco, ninguém se entusiasmou com ela. Foi publicada porque, naquele dia, não houve escândalo maior ou equivalente ao da tainha podre. Meu tópico não fez tremer os alicerces do mercado, nem o mercado genérico do comércio humano nem o do Mercado Municipal, que era todo de ferro fundido na Bélgica, um dos orgulhos do Rio daquela época.
Creio que, a partir daquele histórico dia, os tópicos começaram a ser menos eficientes. Tainhas podres continuam por aí, os tópicos da imprensa perderam o poder de fogo, foram substituídos pelas CPIs, que, embora temidas, são facilmente evitadas.

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