São Paulo, sábado, 04 de agosto de 2001

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CRÍTICA

Cabral se veste de Nara

DA REPORTAGEM LOCAL

Uma das coisas mais bonitas na nova biografia de Sérgio Cabral é que o autor parece ali se vestir de Nara Leão, incorporando a elegância e a discrição que se contavam entre as melhores características da artista.
"Nara Leão - Uma Biografia" é um livro discreto. Parece econômico, parece ir se apoiando quase só numa fenomenal coleção de frases e informações de e sobre Nara, colhidas numa pesquisa em mais de 40 anos de imprensa.
Não penetra na futrica, nunca investe no que não é essencial à composição do perfil da mais importante cantora brasileira de seu tempo (como ele próprio defende, embora não diretamente no livro). Mas está tudo lá, em elegantes e discretas entrelinhas: as inconstâncias psicológicas, os tumultos amorosos, as rivalidades dentro dos muros da MPB.
É muito menos minucioso no livro sobre Nara que no que escreveu sobre Tom Jobim, por exemplo. Mas essa é uma outra túnica que tomou emprestada de Nara -a concisão era outra de suas qualidades centrais, provavelmente aprendida (mas nunca explicitada) com João Gilberto.
O que a princípio poderia até parecer um relato monótono sobre uma figura meio esquecida na poeira da MPB se torna, à medida que Cabral vai se fazendo convincente, uma história ímpar, fortemente emocionante.
Ao desavisado que ainda não havia percebido isso, a grandeza de Nara Leão assoma, assustadora, conforme as páginas do livro vão correndo.
Cabral vai contando e desenrolando um rico novelo. Conta, dizendo sem dizer explicitamente, que Nara se insurgiu cedo demais contra a bossa que a formou, por amor ao passado que o movimento negava, por amor à política e por amor frustrado a Ronaldo Bôscoli. Que, jovenzinha como era, influenciou enormemente a dama da canção Elizeth Cardoso.
Que, mocinha e repleta de inocência arrogante, peitou o regime militar com a violência de um marmanjão. Que cedeu à barra pouco depois, fazendo o Brasil assoviar a tolice doce de "A Banda".
Que em 68 se agregou à turminha tropicalista por puro amor ao novo e ao inusual, o mesmo amor que a faria em outros momentos apoiar o samba encabulado, os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes (foi a primeira a cantá-los), as músicas de Fagner ou Roberto e Erasmo Carlos.
Que o AI-5 e o exílio ceifaram seu entusiasmo político-musical para sempre, ainda que os anos 70 recebessem de sua voz mais uma série de pequenas obras-primas.
Da curva 68/69 em diante, tornava-se uma artista interrompida, calada no inconformismo pelo rumo que o Brasil tomava. Dolorosa, a parte final do livro encena com a discrição de Nara a metáfora da gigantesca derrocada nacional, escondida num tumor aninhado no cérebro da mais importante cantora brasileira de seu tempo. Resta-nos a história.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)

Nara Leão - Uma Biografia     
Autor: Sérgio Cabral
Editora: Lumiar
Quanto: R$ 29 (268 págs.)



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