São Paulo, sábado, 04 de agosto de 2001

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Antes daquela famosa questão

John Updike especula sobre o passado das tormentas do Hamlet de Shakespeare, em 'Gertrudes e Cláudio', que a Companhia das Letras lança este mês

Gerutha fora batizada e criada segundo a fé e as práticas cristãs, porém sem fervor, no ambiente por vezes licencioso da corte de seu pai, em que não havia uma rainha. Quanto às crenças de Rorik referentes aos pontos fundamentais -de onde viemos, para onde vamos-, ela imaginava que fossem convencionais e pouco sólidas, tais como as suas. "Pai, o senhor parece zombeteiro, porém, por meio da fé, Horwendil tenta não apenas ser um senhor melhor para seus vassalos como também um homem melhor para seus pares. Ele trata-me com delicadeza, mesmo quando não está num estado de espírito em que possa sentir desejo por mim." Seu marido, disse ela a si própria, desde que sua gravidez se tornara mais evidente, procurava-a bem pouco, muito embora agora, mais que nunca, ela sentisse necessidade de uma confirmação de que continuava bela. "Ele quer ser bom", concluiu, com uma simplicidade pungente que surpreendeu seus próprios ouvidos, como se as notas agudas da criança enterrada dentro dela houvessem soado de repente.
"Eu preferiria ouvir-te dizer que ele é bom", Rorik conseguiu dizer, apesar da dor que sentia. "É grande o descompasso entre o que ele quer ser e o que é?"
"Não", disse ela, secamente. "Não há nenhum descompasso. Horwendil é maravilhoso. É um marido adequado sob todos os aspectos, tal como o senhor me prometeu que ele seria." Era com um toque de malícia que evocava as promessas interesseiras que ele lhe fizera. Mesmo os moribundos, enquanto não morrem, os vivos não os poupam.
"Sob todos os aspectos", Rorik repetiu por fim, suspirando como se sentisse o que havia de vingativo naquela expressão. "Entre duas pessoas nada nunca é nada "sob todos os aspectos". Até mesmo entre mim e Ona havia uma barreira de idioma, uma divergência quanto a expectativas tácitas. Em todo casamento sempre há peças que não se encaixam. Os filhos de Gerwindil têm a marca da selvageria da Jutlândia. É uma terra dura, onde a solidão leva os pastores a enlouquecer e maldizer a Deus. Durante meses a fio, as nuvens negras jamais descobrem o Skagerrak. Horwendil tenta ser bom, mas seu irmão Feng não cuida de sua propriedade vizinha e hipotecou boa parte de sua herança na Jutlândia para buscar aventuras no sul -até mesmo, segundo ouvi dizer, numa distante ilha que já pertenceu aos normandos, chamada Sicília. É uma conduta imprudente e irresponsável. Terei errado, minha filha querida, ao insistir para que te casasses com um filho de Gerwindil? Já naquela época eu sentia minha morte dentro de mim, e queria ver-te bem protegida por um outro homem."
"E estou protegida, sim", disse ela com doçura, compreendendo que aquela conversa era o pedido de desculpas de Rorik, caso tal fosse necessário. Porém Gerutha, sensata, pensou que nada de mau fora feito: fizera um excelente casamento.
Rorik morreu, e Horwendil era o candidato natural. Para não ter de viajar com frequência, Gerutha havia se mudado com todo seu séquito para Elsinore, de modo que pudesse cuidar do pai moribundo. Após a pompa do funeral no cemitério pedregoso e nevoento, onde voltavam ao pó os ossos dos habitantes de Elsinore -o advogado ao lado do curtidor, o cortesão ao lado do verdugo, a donzela ao lado do louco-, Horwendil juntou-se à esposa indo para o castelo real, instalando-se prematuramente nos aposentos do rei durante as semanas em que se reuniam as thing provinciais em Viborg. Umas poucas vozes pronunciaram-se em favor de Feng, por ser o irmão de Horwendil -embora um ano e meio mais moço- melhor conhecedor do modo de agir dos estrangeiros e, portanto, mais capacitado para frustrar as tramóias dos alemães, polacos e suecos sem necessidade de recorrer à guerra; pois a guerra, à medida que as colheitas e o comércio, não sendo interrompidos, iam proporcionando mais conforto tanto nos castelos quanto nos casebres, estava se tornando impopular. Outros defenderam com lealdade este ou aquele membro da rud nobre -em particular o conde de Holsten-, cuja rede de parentesco parecia uma maneira mais promissora de manter unidos os diversos pedaços da Dinamarca, ali na fronteira setentrional de uma Europa convulsa. Porém, no final, parecia claro que os votos dos eleitores escolheriam Horwendil, matador de Koll e marido de Gerutha.
Apenas Corambus, o camareiro-mor de Rorik, julgou inapropriada a mudança precipitada de Horwendil para os aposentos reais. Embora Gerutha o considerasse um velho, na verdade Corambus era um quarentão robusto, com um filho ainda pequeno e uma mulher mais moça, Magrit de Mon, de tez tão clara que parecia transparente e de sensibilidade de tal modo delicada que suas palavras eram misteriosas e melodiosamente confusas.
Viria a morrer no segundo parto, dez anos depois, e (para adiantar um pouco nossa história) Corambus jamais perderia de todo o ressentimento contra Horwendil, que no íntimo sempre lhe pareceu um usurpador rude. Embora servisse o novo rei de modo escrupuloso, cumprindo todas as suas obrigações, era a rainha, filha única de Rorik e única representante viva de seu espírito, que Corambus realmente servia e amava. Amava-a tal como o faziam todos os moradores de Elsinore que haviam convivido diretamente com aquela criança encantadora e radiante; e mesmo depois que Gerutha tornou-se uma mulher casada seu amor permaneceu, talvez até transformando-se em ciúme, embora ela o considerasse um velho e embora seus modos formais desde cedo o tornassem uma pessoa cautelosa, implicante e sentenciosa.
Antes mesmo que os mensageiros chegassem de Viborg com o veredicto esperado -decisão unânime de quatro províncias-, Horwendil já havia começado a buscar apoio na rud no sentido de promover um ataque contra Fortinbrás. O ritual de coroação foi perfunctório, pois era necessário formar um exército para expulsar o invasor norueguês de suas cabeças-de-praia na Jutlândia. Enquanto esses preparativos militares apressados se realizavam, Gerutha lentamente amadurecia, o lindo ventre inchado coberto de veias azuis e estrias prateadas. E, por obra de uma dessas coincidências auspiciosas que ficam marcadas nos calendários da memória dos homens, Fortinbrás da barba loura foi combatido, derrotado e morto, nas dunas de Thy, no mesmo dia em que a rainha, após uma agonia de águia de sangue, deu à luz um herdeiro varão, a quem deram o nome de Amleth. O menino, que emergiu azul com o esforço do parto, nasceu com uma coifa, o que era uma marca de grandeza ou de fortuna adversa -os adivinhos discordavam quanto a esse ponto.
O nome, proposto por Horwendil, era uma homenagem a sua vitória, nas dunas do oeste da Jutlândia, de onde se vêem, ao longe, as águas tormentosas do Skagerrak, sendo uma referência a um dos versos cantados pelos bardos sobre as Nove Donzelas do Moinho da Ilha, que, nos tempos de antanho, preparavam a farinha de Amleth -Amloa mólu. O significado dessa expressão, que passara de uma geração a outra tal como um seixo que vai ficando cada vez mais liso, era desconhecido para os próprios bardos; a farinha era interpretada como as areias da praia, sendo um moinho a máquina de mundo que reduz a pó todos os filhos da terra. O desejo de Gerutha era o de que o menino se chamasse Rorik, para homenagear seu pai e predestiná-lo ao trono. Mas Horwendil preferiu homenagear a si próprio, ainda que de modo indireto. Assim, o amor que Gerutha sentia por aquele rebento de seu próprio corpo desde o início continha um travo amargo.
Amleth, por sua vez, achava azedo o leite da mãe -pois passava boa parte da noite chorando, digerindo-o, e, quando sua boca grudava-se no seio doído de Gerutha, seu rostinho franzia-se de repulsa. Não era uma criança grande; se fosse, o parto teria se prolongado de tal modo que a mãe morreria, e tampouco era saudável. Havia sempre alguma pequena moléstia a incomodá-lo -cólicas, brotoejas, resfriados e crupes intermináveis, febres que o deixavam acamado por muito tempo e que, quando o menino cresceu mais, a mãe, saudável e ativa em quase todos os dias de sua vida, passou a ver como um melindre. À medida que nele se desenvolviam as faculdades da linguagem e da imaginação, Amleth passou a dramatizar sua própria situação, brigando por todos os motivos com os pais, os padres e os professores. Apenas Yorik, o bobo da corte, um ser desprezível, talvez louco, parecia contar com sua aprovação: o menino adorava um chiste, a ponto de ver todo o mundo, tal como o conhecia em Elsinore, como uma grande piada. Sua mãe achava que as pilhérias eram para Amleth uma espécie de escudo por meio do qual ele se esquivava das obrigações mais sérias e das intimidades mais profundas.
Gerutha sentia que seu amor sofrera um desvio. Algo impedia que seu coração se abrisse para aquela criança frágil, tensa e respondona. Talvez tivesse se tornado mãe cedo demais; teria pulado uma etapa na jornada de sua vida, de modo que não pudera fazer a transição do amor filial para o materno. Ou talvez a culpa fosse do menino: tal como a água se divide em glóbulos sobre uma mesa recém-encerada ou couro oleado, assim também seu amor lhe parecia escorrer sobre Amleth e permanecer na superfície, brilhando como gotas de mercúrio, sem ser absorvido. Ele era bem filho de seu pai -contido, distante, com a melancolia dos jutos recoberta pelos modos afetados e as habilidades refinadas de um nobre. Não apenas um nobre: ele era um príncipe, tal como Gerutha fora uma princesa.



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