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Antes daquela famosa questão
John Updike especula sobre o passado das tormentas do Hamlet de Shakespeare, em 'Gertrudes e Cláudio', que a Companhia das Letras lança este mês
Gerutha fora batizada e criada segundo a fé e as
práticas cristãs, porém sem fervor, no ambiente
por vezes licencioso da corte de seu pai, em que
não havia uma rainha. Quanto às crenças de Rorik referentes aos pontos fundamentais -de onde viemos, para onde vamos-, ela imaginava
que fossem convencionais e pouco sólidas, tais
como as suas. "Pai, o senhor parece zombeteiro,
porém, por meio da fé, Horwendil tenta não apenas ser um senhor melhor para seus vassalos como também um homem melhor para seus pares.
Ele trata-me com delicadeza, mesmo quando não
está num estado de espírito em que possa sentir
desejo por mim." Seu marido, disse ela a si própria, desde que sua gravidez se tornara mais evidente, procurava-a bem pouco, muito embora
agora, mais que nunca, ela sentisse necessidade
de uma confirmação de que continuava bela. "Ele
quer ser bom", concluiu, com uma simplicidade
pungente que surpreendeu seus próprios ouvidos, como se as notas agudas da criança enterrada dentro dela houvessem soado de repente.
"Eu preferiria ouvir-te dizer que ele é bom", Rorik conseguiu dizer, apesar da dor que sentia. "É
grande o descompasso entre o que ele quer ser e o
que é?"
"Não", disse ela, secamente. "Não há nenhum
descompasso. Horwendil é maravilhoso. É um
marido adequado sob todos os aspectos, tal como
o senhor me prometeu que ele seria." Era com
um toque de malícia que evocava as promessas
interesseiras que ele lhe fizera. Mesmo os moribundos, enquanto não morrem, os vivos não os
poupam.
"Sob todos os aspectos", Rorik repetiu por fim,
suspirando como se sentisse o que havia de vingativo naquela expressão. "Entre duas pessoas
nada nunca é nada "sob todos os aspectos". Até
mesmo entre mim e Ona havia uma barreira de
idioma, uma divergência quanto a expectativas
tácitas. Em todo casamento sempre há peças que
não se encaixam. Os filhos de Gerwindil têm a
marca da selvageria da Jutlândia. É uma terra dura, onde a solidão leva os pastores a enlouquecer e
maldizer a Deus. Durante meses a fio, as nuvens
negras jamais descobrem o Skagerrak. Horwendil tenta ser bom, mas seu irmão Feng não cuida
de sua propriedade vizinha e hipotecou boa parte
de sua herança na Jutlândia para buscar aventuras no sul -até mesmo, segundo ouvi dizer, numa distante ilha que já pertenceu aos normandos,
chamada Sicília. É uma conduta imprudente e irresponsável. Terei errado, minha filha querida,
ao insistir para que te casasses com um filho de
Gerwindil? Já naquela época eu sentia minha
morte dentro de mim, e queria ver-te bem protegida por um outro homem."
"E estou protegida, sim", disse ela com doçura,
compreendendo que aquela conversa era o pedido de desculpas de Rorik, caso tal fosse necessário. Porém Gerutha, sensata, pensou que nada de
mau fora feito: fizera um excelente casamento.
Rorik morreu, e Horwendil era o candidato natural. Para não ter de viajar com frequência, Gerutha havia se mudado com todo seu séquito para Elsinore, de modo que pudesse cuidar do pai
moribundo. Após a pompa do funeral no cemitério pedregoso e nevoento, onde voltavam ao pó
os ossos dos habitantes de Elsinore -o advogado
ao lado do curtidor, o cortesão ao lado do verdugo, a donzela ao lado do louco-, Horwendil juntou-se à esposa indo para o castelo real, instalando-se prematuramente nos aposentos do rei durante as semanas em que se reuniam as thing provinciais em Viborg. Umas poucas vozes pronunciaram-se em favor de Feng, por ser o irmão de
Horwendil -embora um ano e meio mais moço- melhor conhecedor do modo de agir dos estrangeiros e, portanto, mais capacitado para frustrar as tramóias dos alemães, polacos e suecos
sem necessidade de recorrer à guerra; pois a guerra, à medida que as colheitas e o comércio, não
sendo interrompidos, iam proporcionando mais
conforto tanto nos castelos quanto nos casebres,
estava se tornando impopular. Outros defenderam com lealdade este ou aquele membro da rud
nobre -em particular o conde de Holsten-, cuja rede de parentesco parecia uma maneira mais
promissora de manter unidos os diversos pedaços da Dinamarca, ali na fronteira setentrional de
uma Europa convulsa. Porém, no final, parecia
claro que os votos dos eleitores escolheriam Horwendil, matador de Koll e marido de Gerutha.
Apenas Corambus, o camareiro-mor de Rorik,
julgou inapropriada a mudança precipitada de
Horwendil para os aposentos reais. Embora Gerutha o considerasse um velho, na verdade Corambus era um quarentão robusto, com um filho
ainda pequeno e uma mulher mais moça, Magrit
de Mon, de tez tão clara que parecia transparente
e de sensibilidade de tal modo delicada que suas
palavras eram misteriosas e melodiosamente
confusas.
Viria a morrer no segundo parto, dez anos depois, e (para adiantar um pouco nossa história)
Corambus jamais perderia de todo o ressentimento contra Horwendil, que no íntimo sempre
lhe pareceu um usurpador rude. Embora servisse
o novo rei de modo escrupuloso, cumprindo todas as suas obrigações, era a rainha, filha única de
Rorik e única representante viva de seu espírito,
que Corambus realmente servia e amava. Amava-a tal como o faziam todos os moradores de Elsinore que haviam convivido diretamente com
aquela criança encantadora e radiante; e mesmo
depois que Gerutha tornou-se uma mulher casada seu amor permaneceu, talvez até transformando-se em ciúme, embora ela o considerasse um
velho e embora seus modos formais desde cedo o
tornassem uma pessoa cautelosa, implicante e
sentenciosa.
Antes mesmo que os mensageiros chegassem
de Viborg com o veredicto esperado -decisão
unânime de quatro províncias-, Horwendil já
havia começado a buscar apoio na rud no sentido
de promover um ataque contra Fortinbrás. O ritual de coroação foi perfunctório, pois era necessário formar um exército para expulsar o invasor
norueguês de suas cabeças-de-praia na Jutlândia.
Enquanto esses preparativos militares apressados se realizavam, Gerutha lentamente amadurecia, o lindo ventre inchado coberto de veias azuis
e estrias prateadas. E, por obra de uma dessas
coincidências auspiciosas que ficam marcadas
nos calendários da memória dos homens, Fortinbrás da barba loura foi combatido, derrotado e
morto, nas dunas de Thy, no mesmo dia em que a
rainha, após uma agonia de águia de sangue, deu à luz um herdeiro varão, a quem deram o
nome de Amleth. O menino, que emergiu azul
com o esforço do parto, nasceu com uma coifa, o
que era uma marca de grandeza ou de fortuna
adversa -os adivinhos discordavam quanto a
esse ponto.
O nome, proposto por Horwendil, era uma homenagem a sua vitória, nas dunas do oeste da Jutlândia, de onde se vêem, ao longe, as águas tormentosas do Skagerrak, sendo uma referência a
um dos versos cantados pelos bardos sobre as
Nove Donzelas do Moinho da Ilha, que, nos tempos de antanho, preparavam a farinha de Amleth
-Amloa mólu. O significado dessa expressão,
que passara de uma geração a outra tal como um
seixo que vai ficando cada vez mais liso, era desconhecido para os próprios bardos; a farinha era
interpretada como as areias da praia, sendo um
moinho a máquina de mundo que reduz a pó todos os filhos da terra. O desejo de Gerutha era o
de que o menino se chamasse Rorik, para homenagear seu pai e predestiná-lo ao trono. Mas
Horwendil preferiu homenagear a si próprio,
ainda que de modo indireto. Assim, o amor que
Gerutha sentia por aquele rebento de seu próprio
corpo desde o início continha um travo amargo.
Amleth, por sua vez, achava azedo o leite da
mãe -pois passava boa parte da noite chorando, digerindo-o, e, quando sua boca grudava-se
no seio doído de Gerutha, seu rostinho franzia-se
de repulsa. Não era uma criança grande; se fosse,
o parto teria se prolongado de tal modo que a
mãe morreria, e tampouco era saudável. Havia
sempre alguma pequena moléstia a incomodá-lo
-cólicas, brotoejas, resfriados e crupes intermináveis, febres que o deixavam acamado por muito tempo e que, quando o menino cresceu mais, a
mãe, saudável e ativa em quase todos os dias de
sua vida, passou a ver como um melindre. À medida que nele se desenvolviam as faculdades da
linguagem e da imaginação, Amleth passou a
dramatizar sua própria situação, brigando por
todos os motivos com os pais, os padres e os professores. Apenas Yorik, o bobo da corte, um ser
desprezível, talvez louco, parecia contar com sua
aprovação: o menino adorava um chiste, a ponto
de ver todo o mundo, tal como o conhecia em Elsinore, como uma grande piada. Sua mãe achava
que as pilhérias eram para Amleth uma espécie
de escudo por meio do qual ele se esquivava das
obrigações mais sérias e das intimidades mais
profundas.
Gerutha sentia que seu amor sofrera um desvio. Algo impedia que seu coração se abrisse para
aquela criança frágil, tensa e respondona. Talvez
tivesse se tornado mãe cedo demais; teria pulado
uma etapa na jornada de sua vida, de modo que
não pudera fazer a transição do amor filial para o
materno. Ou talvez a culpa fosse do menino: tal
como a água se divide em glóbulos sobre uma
mesa recém-encerada ou couro oleado, assim
também seu amor lhe parecia escorrer sobre
Amleth e permanecer na superfície, brilhando
como gotas de mercúrio, sem ser absorvido. Ele
era bem filho de seu pai -contido, distante, com
a melancolia dos jutos recoberta pelos modos
afetados e as habilidades refinadas de um nobre.
Não apenas um nobre: ele era um príncipe, tal
como Gerutha fora uma princesa.
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