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NELSON ASCHER
Cuidado com os pacifistas
A atriz francesa Marie
Trintignant, em estado comatoso havia quase uma semana, morreu ou, segundo o eufemismo a que recorreu o "Libération" em sua manchete, "apagou-se" na última sexta-feira. Filha do
grande ator Jean-Louis Trintignant e de uma celebridade local, a
cineasta Nadine Trintignant,
Marie, que tinha 41 anos, quatro
filhos e um currículo de quase 60
filmes, estava em Vilnius, capital
da Lituânia, filmando a vida de
sua compatriota, a escritora Sidonie-Gabrielle Colette (1873-1954).
É seu namorado, o roqueiro
Bertrand Cantat, de 39 anos,
band leader e letrista do grupo
Noir Desir (Negro Desejo), que está sendo acusado de tê-la agredido numa briga durante o fim de
semana anterior. Mas não foram
apenas os envolvidos, ou seja, a
dinastia artística Trintignant de
um lado e um cantor famoso metido a poeta do outro, que transformaram esse "fait divers" no
"talk of the town" parisiense. A
história, muito mais rica, evoca,
só que de forma substancialmente melhorada, aqueles dramas intragáveis de Woody Allen, como
"Interiores", nos quais não há silêncio que não seja profundo e em
que cada personagem é sensível,
artista ou faz análise.
Na França e, em menor medida, no resto da Europa continental, atrizes e cineastas, roqueiros e
letristas não são meros "entertainers". Wolfgang Amadeus Mozart não come mais com a criadagem na cozinha do castelo dos Esterházy. Eles são, hoje em dia, a
nata da intelectualidade, um grupo cuja importância para o destino da humanidade o exime de
humilhações como a de ter de
vender seu peixe ao público. O Estado, por meio de incentivos ou
de subvenções, desempenha esse
papel e, confiscando o dinheiro
dos ricos inúteis -garis, motoristas de táxi, médicos, garçons, lojistas etc.-, assegura aos pobres
criativos um lugar ao sol, de preferência em Cannes.
Dessa maneira, a ralé, que, de
tão alienada, segue preferindo o
rock anglo-americano ou as produções hollywoodianas, mesmo
que não se interesse por essa cultura superior, sustenta-a com seu
trabalho (que, aliás, não é muito).
Quanto aos refinados produtores,
dispensados de prestar atenção
aos gostos ou exigências de uma
audiência obrigada de antemão a
pagar-lhes, eles se dedicam, com a
máxima liberdade, à criação, algo que geralmente consiste em
agradar a seus mecenas estatais e
em bajular quem esteja alguns
degraus acima na hierarquia de
sua guilda.
As ironias desse caso são muitas. Se não envolvesse a morte de
uma jovem mulher que dispunha
de talento suficiente para, num
outro ambiente cultural, triunfar
por seus próprios meios, quem sabe protagonizando filmes de sucesso (sim, refiro-me ao sucesso
comercial), seria tentador apresentá-lo sob a forma de sátira de
ou paródia. Por exemplo, ambas
as Trintignant, mãe e filha, eram
feministas militantes. Uma recente série de TV, dirigida por uma e
estrelada pela outra, narra a trajetória, entre os anos 30 e 70, de
Vitória, médica e mãe solteira
que, depois de engajar-se na Resistência francesa, adere ao feminismo. O nome da produção (que,
estranhamente, ecoa os títulos do
marquês de Sade) é "Vitória ou a
Dor das Mulheres" (2000). Mais
um exemplo: tanto a atriz como o
roqueiro, pacifistas que eram (como o resto dos bem-pesantes europeus), participaram das manifestações contra a libertação anglo-americana do Iraque e a deposição de seu ditador genocida.
De Bertrand Cantat, o acusado,
pode-se mesmo dizer que é violentamente pacifista. Não há nenhum paradoxo aqui. Quem assassinou, no ano passado, o político holandês Pim Fortuyn, homossexual assumido e conservador,
mas falsamente acusado de direitista por achar que a imigração
muçulmana representava um perigo para o liberalismo do país, foi
um pacifista que defendia causas
ecológicas e os direitos dos animais.
Por seu turno, as passeatas em
prol da paz, como as voltadas
contra a globalização, frequentemente degeneram em quebra-quebra ou até em punhaladas.
Um dos animadores de tais tendências, José Bové, considera-se
acima da lei, e, o que é pior, as autoridades concordam com isso.
Como, apesar de ter cruzado a linha que separa a militância legítima da violência criminosa, não
ficará encarcerado nem uma fração do tempo a que seria condenado um vândalo menos apadrinhado, tão logo seja posto em liberdade, ele tentará de novo cassar fisicamente a seus concidadãos o direito de comerem o que e
onde quiserem.
A banda chamada pateticamente de Noir Desir (um nome
que já era "ringard", ultrapassado, antes mesmo de Baudelaire
publicar, em 1857, "As Flores do
Mal") é um conjunto francês de
rock (ou de rock francês), definição que, para bom entendedor,
basta. Os ritmos que combinam
com o monossilabismo do inglês
resistem às línguas latinas e, como a França não foi presenteada
com um Vinicius de Moraes ou
com os tropicalistas, gente capaz
de equacionar elegantemente o
impasse em questão, seu rock procura suprir o que lhe falta na essência com a verborragia politizada.
As canções de seu vocalista, que
(oh, surpresa !) diz admirar Arthur Rimbaud (embora este tenha abandonado a literatura
com metade da idade do roqueiro), constituem, com seus ataques
ao capitalismo, à mercantilização
e ao lucro, pregando que "outro
mundo é possível", uma espécie
de hinário da nova religião "altermundialista". Não é à toa, portanto, que Cantat se identifica
com Attac, um grupo semi-oficial
que pretende sobretaxar todas as
transações financeiras do planeta, provavelmente para subsidiar
bandas que ninguém quer ouvir e
filmes que ninguém quer ver.
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