|
Texto Anterior | Índice
DRAUZIO VARELLA
O sono e os sonhos
Na seleção natural, teriam levado vantagem os que desenvolveram a habilidade de sonhar
SOMOS animais que hibernam à
noite. Nessas horas em que os
músculos repousam, milhões
de neurônios em ação coordenada
disparam estímulos elétricos para o
córtex, a camada mais superficial do
cérebro, responsável pelas características intelectuais que nos distinguem das lagartixas.
Como nós, os demais mamíferos
sonham. Prova da origem comum
do sonho em espécies tão díspares
quanto ratos, golfinhos ou ursos, seres incapazes de dar às sílabas significado semântico, é que o enredo dos
sonhos humanos é construído integralmente por imagens. Neles, não
se escuta a voz de um narrador.
Econômica como é a seleção natural, a competição jamais privilegiaria uma característica como o sono,
que expõe o animal aos predadores,
se ela não fosse essencial para a sobrevivência.
A meu ver, nada ilustra a relação
dos sonhos com o impulso de permanecer vivo, como os pesadelos,
ocasiões em que assistimos às piores
tragédias, à morte de pessoas queridas, enfrentamos momentos aterradores, chegamos a gritar e a acordar
assustados, mas em hipótese alguma morremos. Ou você, leitor, já sonhou que estava num caixão, à beira
da sepultura?
Enquanto dura um sonho, o cérebro é incapaz de distingui-lo da realidade. Por isso, o sistema toma a
precaução de desligar o comando da
musculatura, assim que o corpo
adormece. Em gatos, quando destruímos os neurônios da área cerebral responsável por tal desligamento, os sonhos provocam movimentos convulsos que colocam em risco
a integridade física.
Essa incapacidade cerebral de reconhecer a experiência onírica como fantasia intrigou egípcios, gregos, Freud e uma multidão de interpretadores dos sonhos como fenômenos associados à premonição ou
aos mistérios do subconsciente.
Na década de 1990, um grupo da
Universidade do Arizona instalou
eletrodos no cérebro de ratos para
monitorar a atividade elétrica ao
percorrer um labirinto. No percurso, cada vez que o animal mudava de
direção entrava em atividade um
grupo de neurônios situados em determinada área do hipocampo, estrutura crucial para o armazenamento de novas memórias. A monitorização foi capaz de demonstrar
que a mesma seqüência de neurônios era ativada quando o rato pegava no sono, depois do experimento.
Este ano, a equipe de Jan Born, da
Universidade de Lübeck, publicou
uma pesquisa conduzida com voluntários colocados diante da tela de
um computador que exibia 30 pares
de cartas. A posição de cada par era
mostrada durante alguns segundos,
enquanto as outras cartas permaneciam viradas para baixo. No final,
com eletrodos instalados na cabeça,
os participantes deviam identificar a
localização dos pares.
Na fase de memorização, parte
dos voluntários foi borrifada com
uma essência de rosas, para verificar
se a repetição desse estímulo à noite
reativaria as memórias da sessão de
treinamento. A análise da atividade
elétrica durante o sono mostrou que
realmente o perfume ativava os hipocampos daqueles previamente
expostos a ele, mas não nos demais.
E que, no dia seguinte, ao identificar
novamente as cartas, a performance
dos que receberam o estímulo foi
superior.
Esse é o primeiro estudo a demonstrar que é possível ativar explicitamente a memorização, por meio
da aplicação de um estímulo no hipocampo durante o sono.
Mas nem todos os neurocientistas
concordam com a afirmação de que
a atividade cerebral ao sonhar tenha
como objetivo reprisar experiências
recentes para memorizá-las. Consideram mais provável que sua finalidade seja aliviar a tensão armazenada nas sinapses, os espaços microscópicos por meio dos quais os estímulos elétricos são conduzidos de
um neurônio para outro.
Eles partem do princípio de que o
cérebro consome 20% da energia do
metabolismo, e que a repetição
constante de estímulos durante o
período de vigília pode saturar as sinapses e torná-las inaptas para a
aquisição de novos conhecimentos.
Os sonhos restabeleceriam o equilíbrio do sistema, descarregando o excesso de energia acumulada nas sinapses.
É possível que o sono tenha evoluído para ajudar a economizar
energia nos períodos em que se torna menos provável encontrar alimentos do que predadores. Na seleção natural, teriam levado vantagem
os animais que desenvolveram a habilidade de sonhar, esteja ela associada ao aprimoramento das memórias ou ao alívio da tensão sobre as
sinapses para que elas possam funcionar melhor no dia seguinte.
Texto Anterior: "Il Guarany" abre festival de ópera em Belém do Pará Índice
|