São Paulo, segunda, 4 de agosto de 1997.



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Sobre a culpa de comer orelhas de chocolate

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha Os norte-americanos lançaram um novo tipo de chocolate, imitando a orelha de Evander Holyfield, semipartida pelos dentes de Mike Tyson. O chocolate custa US$ 3,50, e se o critério for apenas o de divulgação, o lançamento foi um sucesso.
Não me surpreende. A hipótese do canibalismo como uma prática primordial na história da humanidade seduziu até a ciência.
No momento em que a orelha de chocolate foi lançada, estava lendo o livro de Matt Kartmill intitulado "A View to a Death in the Morning", um ensaio sobre a caça e a natureza, através da história.*
O primeiro capítulo é dedicado à saga do anatomista australiano Raymond Dart, que, na década dos 20, fez pesquisas na região do Transvaal, Estado do norte da África do Sul.
Dart chegou a Transvaal de uma forma pitoresca. O titular da cadeira de anatomia, E.P. Stibbe, foi visto com a amante numa sessão de cinema. Questionado pelo reitor, ele disse apenas que isso era um assunto particular e acabou sendo demitido.
Recrutado em Londres, Dart foi para a África do Sul sem nenhuma grande esperança. Mas as ossadas de macacos que apareceram na sua área de atuação acabaram permitindo que se tornasse famoso. Ele estudou, nomeou e acabou ligando seu nome para sempre ao Australopithecus africanus (macaco sul-africano).
Ao examinar as ossadas que seus alunos encontraram não muito longe da universidade, a primeira questão de fundo que Dart se colocou foi esta: como foi possível que macacos desse porte tenham existido numa área de escassa vegetação?
Aos poucos, o cientista foi chegando à conclusão de que aqueles imensos macacos, quase homens, alimentavam-se de outros bichos, embora preferissem o veado.
Como chegaram a isso? Até a década de 50, Dart achava que os grandes macacos comiam frutas e chegaram à carne por escassez vegetal. Depois, inverteu sua tese: os macacos deixaram as matas em busca de carne. Enfim, seria o gosto de sangue que está na origem da existência humana.
No livro de Matt Kartmill, a história de Dart e suas teses servem como ponto de partida para discutir a racionalização da caça, desde os primórdios da humanidade.
Mas essa origem, hoje discutida pela ciência, permite especulações sobre o canibalismo: na ausência de caninos pontiagudos talvez tenha se amparado nos próprios ossos animais para cortar a carne e a pele.
Não sei se o canibalismo em nossos inconscientes é uma lembrança do que aconteceu, ou uma lembrança da nossa ilusão sobre o que aconteceu de fato. Não podendo resolver esta questão, limito-me a pressentir apenas que há algo de estranho na maneira como o mundo reagiu às dentadas de Mike Tyson
Como reagiriam se, ao invés de uma luta de boxe entre Tyson e Holyfield, milhões de pessoas pudessem ver o pintor Van Gogh cortar a própria orelha e oferecê-la a uma prostituta?
Cada época tem seu enigma e suas formas de mostrá-lo. A transformação da orelha de Holyfield em chocolate é uma boa maneira de trabalhar essa suspeição de canibalismo em nossa história primordial.
Ela tem a mesma leveza da transformação do boi em máscara nas danças folclóricas, seu abate é apenas uma representação. Muita gente usa as teses de Dart para defender a caça; outros usarão o episódio de Mike Tyson para afirmar que o homem é o lobo do homem.
Nesse campo, sou de um moderado otimismo. A tensão criada na noite da luta vai, aos poucos, sendo desfeita. Por meio da transformação da orelha de Holyfield em chocolate, os seres humanos renovam seus vínculos com o passado, real ou imaginário. Mas sobretudo se comprometem, através do humor, com todas as conquistas da evolução. Ainda bem que tudo terminou em chocolate. Há mercado para muitas outras partes do corpo.


* "A View to a Death in the Morning", de Matt Kartmill, Harvard University Press (331 págs.)


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