São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

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Itália ano zero

Divulgação
Imagem do arquivo pessoal de Boris Schnaiderman que retrata soldados da FEB durante a campanha da Itália em 1944


Boris Schnaiderman traduz o outro lado das batalhas em "Guerra em Surdina"

LUCIANA ARAUJO
DA REDAÇÃO

Boris Schnaiderman, 87, nasceu na Ucrânia, em 1917, ano da Revolução Bolchevique. Em "Guerra em Surdina", relançado agora, 40 anos após sua primeira publicação, em 1964, o leitor é conduzido a outro marco, não só da vida do autor, mas também histórico: a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na campanha italiana durante a Segunda Guerra Mundial.
Tradutor do russo para o português de autores como Maiakóvski, Púchkin e Tchekhov, em "Guerra em Surdina", Schnaiderman é interprete de si mesmo e de mais de 20 mil homens, que como ele, foram convocados em 1944, pelo governo Vargas, para lutar ao lado dos Aliados.
A partir do que vivenciou como pracinha numa Itália destruída pela guerra, Schnaiderman constrói uma narrativa ficcional, lançando-se em outra frente de batalha: a de traduzir a experiência real em arte literária.
Em entrevista à Folha, Schnaiderman fala sobre as dificuldades que enfrentou para que se desse tal consubstanciação. No território do papel, o escritor diz ter dado muitas voltas até encontrar seu caminho, o "seu tom". Em suas mãos, a língua portuguesa já era arma bem manejada. Contudo, os tiros demoraram a acertar o alvo que almejava, e ainda almeja, o crítico rigoroso, que ele é. Leia a seguir trechos da entrevista.
 

Folha - Como o sr. decidiu transformar sua experiência como pracinha da FEB em literatura?
Boris Schnaiderman -
Eu precisava relatar a experiência. Se escrevesse uma autobiografia, centraria muito no meu caso, que é atípico, pois era um estrangeiro na FEB, mas eu queria contar a experiência coletiva. Aquilo de o indivíduo não ver a necessidade de lutar e mesmo assim se sair bem me surpreendeu. Para mim, isso só seria possível se eles acreditassem lutar por uma causa justa.

Folha - Essa é a visão do narrador-personagem, o estudante de medicina João Afonso, não?
Schnaiderman -
Sim, a visão é minha mesmo, mas nem tudo o que acontece com João Afonso aconteceu comigo.

Folha - Com relação aos fatos, quais são as fronteiras entre testemunho e a criação ficcional em "Guerra em Surdina"?
Schnaiderman -
O livro é uma ficção baseada no que aconteceu comigo ou com companheiros da FEB, ou no que poderia ter acontecido. São verídicos, por exemplo, os episódios em que servi de intérprete [narrados no capítulo "Naufrágio"], quando fui chamado para interrogar um homem suspeito de ser espião alemão e um russo. Aliás, usei a primeira pessoa nestes casos, mas isso não é regra. Muito do que é narrado em primeira pessoa eu não vivi.

Folha - Quando "Guerra em Surdina" começou a ser escrito?
Schnaiderman -
Comecei a escrever ainda na Itália. Escrevia e rasgava... Escrevia e rasgava...Foram 19 anos até conclui-lo. Nunca ficava satisfeito.

Folha - Depois da primeira edição, em 1964, pela Civilização Brasileira, o sr. fez alterações nas reedições da Brasiliense (85 e 95)...
Schnaiderman -
Considero que fui levado pelo entusiasmo, apesar de todo o tempo que levei para finalizar a primeira edição. Depois, introduzi pequenas alterações estilísticas. Nesta nova edição, fiz algumas mudanças para dar mais lógica à seqüência narrativa. Detalhes.

Folha - A publicação pouco após o golpe militar foi por acaso?
Schnaiderman -
Sim, entreguei o livro para o editor antes do golpe. Na época do lançamento ele foi recebido com muito entusiasmo pela crítica. Algumas avaliações eram até exageradas demais. A recepção do público foi fria. A capa da primeira edição trazia a imagem de um soldado tristonho, justamente em um momento em que muita gente não queria saber de militares.

Folha - Como foi o processo de elaboração ficcional?
Schnaiderman -
Foi uma grande dificuldade para mim. Era engenheiro agrônomo e tinha uma formação muito tradicional. Estava acostumado com a estrutura das criações literárias do século 19. Lia os clássicos. Quando comecei a escrever o livro, dominava o português, mas escrevia frases com a sintaxe correta e o texto ficava tolhido. Demorei para encontrar o tom. Precisei travar uma guerra comigo mesmo para criar, misturando gêneros e vozes. Usei um pouco de tudo, romance, conto, diário, carta, documentário jornalístico. Senti um grande alívio quando concluí.

Folha - Nesse momento, a leitura de algum autor moderno o influênciou?
Schnaiderman -
Não fui influenciado, mas estava impressionado com o que escreviam Isaac Bábel e Graciliano Ramos.

Folha - Pretende escrever outra obra literária?
Schnaiderman -
Sim. Quero voltar a esse tema. Em "Guerra em Surdina" não pus tudo o que aconteceu.

Folha - Então o sr. ainda continua insatisfeito?
Schnaiderman -
(risos).


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