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CRÍTICA
Caráter humano garante força de relato
IRINEU FRANCO PERPETUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Tido como o maior tradutor
para o português de Tolstói,
Maiakóvski e outros gigantes da
literatura russa, Boris Schnaiderman revela-se um ficcionista refinado e sensível com o romance
"Guerra em Surdina".
Nada mais oportuno do que a
nova edição sair em um ano em
que duas efemérides fazem o Brasil se debruçar sobre episódios
controversos de sua história. 2004
marca os 50 anos da morte de Getúlio Vargas, sob cujo governo entramos na Segunda Guerra; e os
40 anos do golpe militar.
O livro foi publicado pela primeira vez em 1964 e, na nota à edição atual, o autor comenta: "Tinha uma capa que afastava os leitores em potencial: representava
um soldado tristonho, justamente
numa época em que muita gente
não queria saber de soldados e caserna. Como estávamos longe do
tempo em que se dizia "pracinha",
palavra sempre proferida com
uma conotação carinhosa, em relação aos combatentes da FEB".
Fundador, em 1960, do curso de
russo da USP, Schnaiderman chegou a ser detido em 1969. A história é conhecida: ele escrevia na
lousa, em aula, quando a sala foi
invadida por militares armados.
Resposta do professor: "Nós estamos aqui com giz e apagador e os
senhores vêm interromper a aula
armados de metralhadora?" Uma
reação suficiente para lhe garantir
o "recolhimento" ao Dops.
Schnaiderman nasceu na cidade ucraniana de Úman, em 1917.
Com oito anos de idade, veio para
o Brasil, onde se formou engenheiro-agrônomo, profissão que
chegou a seguir durante alguns
anos. Para exercer profissão liberal, contudo, no Brasil do Estado
Novo, era necessário ser brasileiro
nato ou naturalizado, e ter cumprido o serviço militar.
O futuro tradutor tomou providências para regularizar sua naturalização. Em vez do serviço militar mais "brando", optou por servir em quartel - uma escolha
que o levou a estar entre os militares da Força Expedicionária Brasileira (FEB), enviada à Itália, a
partir de 1944, para combater as
tropas da Alemanha nazista.
"Os gringos querem é carne pra
canhão", diz um dos recrutas convocados, traduzindo a perplexidade e a incredulidade popular
sobre a participação nacional no
conflito. Em prefácio ao livro "A
Luta dos Pracinhas" (1983), de
Joel Silveira e Thassilo Mitke, Rubem Braga escreveu que, 40 anos
depois da formação da FEB, correspondentes de guerra ainda
eram defrontados com perguntas
como: "Mas o Brasil entrou mesmo na guerra?".
Schnaiderman foi sargento de
artilharia e controlador vertical de
tiro, e tem em seu alter ego o personagem João Afonso, que desempenhou as mesmas funções,
e, em "Guerra em Surdina", reflete: "Democracia e liberdade eram
palavras com sentido diverso em
minha boca e nos ouvidos de
meus companheiros".
João Afonso não é, contudo, a
única voz do livro. De um dialogismo e uma polifonia que na
qual talvez não seja exagero encontrar ecos das teorias de Bakhtin (afinal, a afinidade de Schnaiderman com o pensador russo é
evidente), a obra abre espaço para
personagens saborosos, oriundos
de diversas camadas sociais.
São esses personagens e suas
histórias paralelas que acabam
conferindo caráter humano à narrativa, permeada, de resto, por temas como o alcoolismo, a degradação moral, a tensão racial entre
os americanos, as pressões sexuais e todo o absurdo da guerra.
Afinal de contas, não basta ter
vivido uma guerra para contá-la
com excelência. Mais do que a experiência, vale, em literatura, o
que é criado, e como é criado.
"Guerra em Surdina" tem valor literário inegável, mostrando que
as grandes obras da literatura russa têm chegado por mãos que manejam com finesse e desenvoltura
a língua portuguesa.
João Afonso não é, como
Schnaiderman, um estrangeiro.
Mas a aguda consciência das diferenças de classe entre ele, pequeno-burguês, e a massa de seus colegas de armas acaba dando ao final da obra um tom de desconforto pela incapacidade de compreender e se comunicar com esse
"povo" brasileiro.
O personagem caminha pelas
ruas após a deposição de Vargas, e
estranha que o "povo" não compartilhe sua euforia. "Como é
possível vivermos tão próximos e
separados?", pergunta-se. "Patrício, com quem convivi um ano e
pico, e que continuo a desconhecer, quem és afinal?" Indagações
inquietantemente atuais, e permanentemente não-respondidas
por nossa intelligentsia.
Guerra em Surdina
Autor: Boris Schnaiderman
Lançamento: Cosac & Naify
Quanto: R$ 39,50 (256 págs.)
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