São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Caráter humano garante força de relato

IRINEU FRANCO PERPETUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Tido como o maior tradutor para o português de Tolstói, Maiakóvski e outros gigantes da literatura russa, Boris Schnaiderman revela-se um ficcionista refinado e sensível com o romance "Guerra em Surdina".
Nada mais oportuno do que a nova edição sair em um ano em que duas efemérides fazem o Brasil se debruçar sobre episódios controversos de sua história. 2004 marca os 50 anos da morte de Getúlio Vargas, sob cujo governo entramos na Segunda Guerra; e os 40 anos do golpe militar.
O livro foi publicado pela primeira vez em 1964 e, na nota à edição atual, o autor comenta: "Tinha uma capa que afastava os leitores em potencial: representava um soldado tristonho, justamente numa época em que muita gente não queria saber de soldados e caserna. Como estávamos longe do tempo em que se dizia "pracinha", palavra sempre proferida com uma conotação carinhosa, em relação aos combatentes da FEB".
Fundador, em 1960, do curso de russo da USP, Schnaiderman chegou a ser detido em 1969. A história é conhecida: ele escrevia na lousa, em aula, quando a sala foi invadida por militares armados. Resposta do professor: "Nós estamos aqui com giz e apagador e os senhores vêm interromper a aula armados de metralhadora?" Uma reação suficiente para lhe garantir o "recolhimento" ao Dops.
Schnaiderman nasceu na cidade ucraniana de Úman, em 1917. Com oito anos de idade, veio para o Brasil, onde se formou engenheiro-agrônomo, profissão que chegou a seguir durante alguns anos. Para exercer profissão liberal, contudo, no Brasil do Estado Novo, era necessário ser brasileiro nato ou naturalizado, e ter cumprido o serviço militar.
O futuro tradutor tomou providências para regularizar sua naturalização. Em vez do serviço militar mais "brando", optou por servir em quartel - uma escolha que o levou a estar entre os militares da Força Expedicionária Brasileira (FEB), enviada à Itália, a partir de 1944, para combater as tropas da Alemanha nazista.
"Os gringos querem é carne pra canhão", diz um dos recrutas convocados, traduzindo a perplexidade e a incredulidade popular sobre a participação nacional no conflito. Em prefácio ao livro "A Luta dos Pracinhas" (1983), de Joel Silveira e Thassilo Mitke, Rubem Braga escreveu que, 40 anos depois da formação da FEB, correspondentes de guerra ainda eram defrontados com perguntas como: "Mas o Brasil entrou mesmo na guerra?".
Schnaiderman foi sargento de artilharia e controlador vertical de tiro, e tem em seu alter ego o personagem João Afonso, que desempenhou as mesmas funções, e, em "Guerra em Surdina", reflete: "Democracia e liberdade eram palavras com sentido diverso em minha boca e nos ouvidos de meus companheiros".
João Afonso não é, contudo, a única voz do livro. De um dialogismo e uma polifonia que na qual talvez não seja exagero encontrar ecos das teorias de Bakhtin (afinal, a afinidade de Schnaiderman com o pensador russo é evidente), a obra abre espaço para personagens saborosos, oriundos de diversas camadas sociais.
São esses personagens e suas histórias paralelas que acabam conferindo caráter humano à narrativa, permeada, de resto, por temas como o alcoolismo, a degradação moral, a tensão racial entre os americanos, as pressões sexuais e todo o absurdo da guerra.
Afinal de contas, não basta ter vivido uma guerra para contá-la com excelência. Mais do que a experiência, vale, em literatura, o que é criado, e como é criado. "Guerra em Surdina" tem valor literário inegável, mostrando que as grandes obras da literatura russa têm chegado por mãos que manejam com finesse e desenvoltura a língua portuguesa.
João Afonso não é, como Schnaiderman, um estrangeiro. Mas a aguda consciência das diferenças de classe entre ele, pequeno-burguês, e a massa de seus colegas de armas acaba dando ao final da obra um tom de desconforto pela incapacidade de compreender e se comunicar com esse "povo" brasileiro.
O personagem caminha pelas ruas após a deposição de Vargas, e estranha que o "povo" não compartilhe sua euforia. "Como é possível vivermos tão próximos e separados?", pergunta-se. "Patrício, com quem convivi um ano e pico, e que continuo a desconhecer, quem és afinal?" Indagações inquietantemente atuais, e permanentemente não-respondidas por nossa intelligentsia.


Guerra em Surdina
    
Autor: Boris Schnaiderman
Lançamento: Cosac & Naify
Quanto: R$ 39,50 (256 págs.)



Texto Anterior: Itália ano zero
Próximo Texto: Trecho
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.