São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

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LITERATURA/CRÍTICA

História é recontada em livros que fogem do lugar comum de retratar apenas o ditador populista

A esfinge de Vargas e os seus decifradores

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Três ótimos livros que não seguem a tendência dominante em nossa historiografia de retratar Getúlio Vargas pelo ângulo do simplismo: ditador, populista e obcecado pelo poder.
O ex-presidente foi interrompido de levar adiante um projeto nacional para o Brasil e sem o qual o país, mesmo na era da chamada globalização, não vai nunca dar certo. O recorrente interesse pela esfinge Vargas vai continuar, pois o Brasil nos últimos 50 anos trilhou um caminho oposto ao que foi traçado em sua "Carta Testamento" sobre o autodomínio da nacionalidade.
O nacionalismo propugnado por ele, refratário à condição do Brasil como exportador de dólares, além de não ter vingado na realidade, é tido como um desejo político autárquico que caducou, ficou anacrônico e perdeu o sentido, confinado à década de 50. A história é escrita pelos vencedores e comunicada pela ideologia das classes dominantes.
A direita entreguista sente indisfarçável volúpia em dizer que ele foi um perdedor. Os seus discípulos a exemplo de João Goulart, Darcy Ribeiro e Leonel Brizola também não se deram bem na política, não conseguiram materializar o desígnio nacionalista e trabalhista oriundo da Revolução de 30. O getulismo antimperialista é a negatividade na história do Brasil há meio século. Uma negatividade reprimida e sabotada, embora volta e meia apareçam novos coveiros da era Vargas.
O livro de Hélio Silva, agora reeditado, é um clássico sobre o tiro colt 32 dado no coração. Médico, Hélio tornou-se um grande historiador, tendo a sorte de não passar pelos cursos universitários de história. Hélio Silva escrevia muito bem e não ficava preso à minudência do secundário. Por que o sangue de Getúlio rolou em 54? Hélio Silva foi simpático à aprontação reacionária 32 constitucional paulista, mas o seu talento de historiador percebeu a grandeza civilizacional embutida no ideário de Vargas. Tragédia shakespeareana. Um "pequeno gigante", disse-o Roosevelt. A conjuntura mundial não lhe deu sossego, emergência de Stalin, de Hitler, de Mussolini, Guerra da Coréia, Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria; aqui em nosso quintal teve de peitar o 32 paulista, a intentona comunista de 35 e o ataque integralista no Catete em 1938, sem mencionar a conspiração da Standard Oil contra a Petrobras.
Estudioso da getuliana, indo fundo em assuntos espinhosos, Juremir Machado da Silva escreve a história sob a forma de romance, o que o levou a intertextos e diálogos imaginários. Não para chapar o personagem em transparência, mas para colocar neblina no mito. Acentuar ainda mais o mito. Conquanto não seja para sacralizá-lo. O que temos é um Getúlio barroco, multifacetado.
O autor, como Gustave Flaubert, não gosta de concluir. Considera Carlos Lacerda, "o corvo do Lavradio", uma espécie de curta-metragem de Vargas. Apaixonado pelo personagem, Juremir não é, no entanto, um getulista. Sabe tudo sobre a Era Vargas.
Ele dedicou o livro a seu amigo Décio Freitas, o saudoso intelectual gaúcho que esteve próximo de Jango e Leonel Brizola, os quais fizeram cada um a seu modo a hermenêutica de Getúlio Vargas. Juremir tem o mérito de sublinhar inteligentemente que a épica romanesca no Brasil do século 20 está inteira na vida e obra de Vargas desde 1930.
A tese defendida por Ronaldo Aguiar, ainda que não seja original, realça o lado vitorioso da derrota representado pelo suicídio altruísta, e não anômico, valendo-se da taxonomia do sociólogo Durkheim. É que no dia 24 de agosto de 1954 o golpismo da UDN, liderado por Carlos Lacerda, sofreu uma derrota momentânea, com o detalhe esquisito que também o Partido Comunista pediu a cabeça de Vargas, quando este enfrentava os interesses do imperialismo dos EUA.
O suicídio dele pegou todo mundo de calça curta. O povo saiu às ruas comovido depredando tanto jornal comunista quanto o udenista. Esse gesto teve uma inequívoca eficácia política, ao afastar a resistência armada e a renúncia vexatória. Adiou em 10 anos o golpe de 64.
As forças políticas anti-democráticas e anti-nacionalistas que queriam a renúncia de Vargas foram as mesmas que derrubaram Goulart e implantaram a ditadura em 1964. Desde então o trabalhismo nacionalista getuliano, hoje configurando-se como uma espécie de memória udigrudi, não mais conseguiu chegar ao poder. Se essa mensagem contém uma verdade histórica, trata-se então de uma verdade que não persuade, porque cerceada diuturnamente mesmo sob a vigência da democracia.


Vitória na Derrota - A morte de Getúlio Vargas
    
Autor: Ronaldo Conde Aguiar
Editora: Casa da Palavra
Quanto: R$39,90 (272 págs.)

Um Tiro no Coração
    
Autor: Hélio Silva
Editora: L&PM
Quanto: R$ 48 (356 págs.)

Getúlio
    
Autor: Juremir Machado da Silva
Editora: Record
Quanto: R$ 44,90 (434 págs.)

- "1954 - Um Tiro no Coração"
Autor: Hélio Silva
Editora: L&PM
Quanto: R$ 48, 192 págs



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