São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

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"LORDE"

O eu é o outro, em romance de Noll

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Um estrangeiro definha, corrói-se e enlouquece em seu fétido cubículo londrino. Você já viu esse filme. Quem sabe "Repulsa ao Sexo", de Roman Polanski, caso não houvesse em "Lorde", último romance do gaúcho João Gilberto Noll, sexo à farta, um frenesi lúbrico, sobretudo homossexual, de sexo solitário, por fim, consumado.
O forasteiro de "Lorde" lembra ainda outro relato de esmorecimento psíquico e moral: o sofrido por Luís da Silva, em "Angústia", de Graciliano Ramos. Luís, em choque existencial com o mundo, não vê solução salvo abismar-se em si mesmo. Há em "Lorde", outrossim, o paulatino e tenebroso filmar (quadro a quadro?) de um esvaziamento de forças que já não eram muito potentes para o início de conversa.
Mas há um tipo diferente de angústia, em "Lorde". O narrador não está em seu mundo, por assim dizer, mas no do outro. O personagem de Noll é um autor brasileiro de meia-idade, que escreveu sete livros e é convidado por motivos que não consegue compreender a uma estada em Londres. Viaja, portanto, do seu mundo na margem do mundo capitalista, para o centro.
Desde o princípio ele desconfia da motivação dos que lhe estenderam o convite. Haveria uma trama sórdida por trás? O Exército britânico estaria envolvido? E por quê? Nas fímbrias de seu delírio, o leitor capta indícios de que a toada pode ser outra.
O dinheiro, minguado, que recebe é uma espécie de bolsa de uma instituição. Querem que ele dê palestras e se encontre com escritores. Em dado momento, levam-no a um hospital. Ele pode ser apenas um escritor relativamente consagrado, traduzido no exterior, pago para entabular compromissos literários na capital inglesa. Algo semelhante ao que viveu o próprio Noll, convidado pelo King's College, de Londres, a assumir o cargo de "writer in residence" -experiência da qual extrai elementos para escrever "Lorde".
Esse escritor deludido (o de "Lorde") passeia pelos bairros centrais de Londres, visita a National Gallery, a abadia de Westminster, entra na casa que foi de T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia. Mas sempre precisa pegar o ônibus 55, para voltar ao subúrbio onde se aloja, reduto de imigrantes do Terceiro Mundo.
Não se trata de uma humilhação, mas de uma constatação. Ele está na capital cosmopolita, mas suas origens revelam outra condição, de país periférico. Em uma recente palestra, o crítico Antonio Candido lembrou que o escritor da metrópole pode dar-se ao luxo de olhar apenas para seu umbigo, ou seja, para suas próprias circunstâncias. O intelectual brasileiro, no entanto, é obrigado a um olhar de dentro e de fora, de si mesmo e do outro, numa "combinação "sui generis" de estranhamento e familiaridade".
O escritor de "Lorde" só enxerga o estranhamento. É como se, súbito, sua perspectiva houvesse desaparecido. Sua trajetória até aquele momento é mentalmente apagada. No início, ele compra um espelho (que não há no apartamento), para não perder a noção de si mesmo, mas logo o vira do avesso. Recusa-se a mirar-se em qualquer espelho. "Tinha vindo para Londres para ser vários", afirma.
Ao contrário de Luís da Silva, de "Angústia", seu destino não é o da fuga neurótica e assassina ao mundo. Lorde dissolve-se no mundo. Antonio Candido diz que o intelectual latino-americano sempre deve dizer: "Eu sou o mesmo e o outro". O herói problemático de Noll, estranho em terra estranha, irremediavelmente apartado de si, só deseja possuir e tornar-se o outro como insinua o desfecho enigmático do livro.


Lorde
   
Autor: João Gilberto Noll
Editora: W11/Francis
Quanto: R$ 32 (112 págs.)



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