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"LORDE"
O eu é o outro, em romance de Noll
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Um estrangeiro definha, corrói-se e enlouquece em seu
fétido cubículo londrino. Você já
viu esse filme. Quem sabe "Repulsa ao Sexo", de Roman Polanski,
caso não houvesse em "Lorde",
último romance do gaúcho João
Gilberto Noll, sexo à farta, um frenesi lúbrico, sobretudo homossexual, de sexo solitário, por fim,
consumado.
O forasteiro de "Lorde" lembra
ainda outro relato de esmorecimento psíquico e moral: o sofrido
por Luís da Silva, em "Angústia",
de Graciliano Ramos. Luís, em
choque existencial com o mundo,
não vê solução salvo abismar-se
em si mesmo. Há em "Lorde", outrossim, o paulatino e tenebroso
filmar (quadro a quadro?) de um
esvaziamento de forças que já não
eram muito potentes para o início
de conversa.
Mas há um tipo diferente de angústia, em "Lorde". O narrador
não está em seu mundo, por assim dizer, mas no do outro. O personagem de Noll é um autor brasileiro de meia-idade, que escreveu sete livros e é convidado por
motivos que não consegue compreender a uma estada em Londres. Viaja, portanto, do seu mundo na margem do mundo capitalista, para o centro.
Desde o princípio ele desconfia
da motivação dos que lhe estenderam o convite. Haveria uma
trama sórdida por trás? O Exército britânico estaria envolvido? E
por quê? Nas fímbrias de seu delírio, o leitor capta indícios de que a
toada pode ser outra.
O dinheiro, minguado, que recebe é uma espécie de bolsa de
uma instituição. Querem que ele
dê palestras e se encontre com escritores. Em dado momento, levam-no a um hospital. Ele pode
ser apenas um escritor relativamente consagrado, traduzido no
exterior, pago para entabular
compromissos literários na capital inglesa. Algo semelhante ao
que viveu o próprio Noll, convidado pelo King's College, de Londres, a assumir o cargo de "writer
in residence" -experiência da
qual extrai elementos para escrever "Lorde".
Esse escritor deludido (o de
"Lorde") passeia pelos bairros
centrais de Londres, visita a National Gallery, a abadia de Westminster, entra na casa que foi de
T.E. Lawrence, o Lawrence da
Arábia. Mas sempre precisa pegar
o ônibus 55, para voltar ao subúrbio onde se aloja, reduto de imigrantes do Terceiro Mundo.
Não se trata de uma humilhação, mas de uma constatação. Ele
está na capital cosmopolita, mas
suas origens revelam outra condição, de país periférico. Em uma
recente palestra, o crítico Antonio
Candido lembrou que o escritor
da metrópole pode dar-se ao luxo
de olhar apenas para seu umbigo,
ou seja, para suas próprias circunstâncias. O intelectual brasileiro, no entanto, é obrigado a um
olhar de dentro e de fora, de si
mesmo e do outro, numa "combinação "sui generis" de estranhamento e familiaridade".
O escritor de "Lorde" só enxerga o estranhamento. É como se,
súbito, sua perspectiva houvesse
desaparecido. Sua trajetória até
aquele momento é mentalmente
apagada. No início, ele compra
um espelho (que não há no apartamento), para não perder a noção de si mesmo, mas logo o vira
do avesso. Recusa-se a mirar-se
em qualquer espelho. "Tinha vindo para Londres para ser vários",
afirma.
Ao contrário de Luís da Silva, de
"Angústia", seu destino não é o da
fuga neurótica e assassina ao
mundo. Lorde dissolve-se no
mundo. Antonio Candido diz que
o intelectual latino-americano
sempre deve dizer: "Eu sou o
mesmo e o outro". O herói problemático de Noll, estranho em
terra estranha, irremediavelmente apartado de si, só deseja possuir
e tornar-se o outro como insinua
o desfecho enigmático do livro.
Lorde
Autor: João Gilberto Noll
Editora: W11/Francis
Quanto: R$ 32 (112 págs.)
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