São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

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Ato de amor e de morte

Em "Mar Aberto", o diretor Alejandro Amenábar conta a história real de um tetraplégico -interpretado por Javier Bardem- que luta pelo direito de morrer

SUSO DE TORO
DO "PAÍS"

"Mar Aberto" é uma história feita de imagens quase sempre serenas, de palavras e de silêncio, de olhares e decisões graves. Seu protagonista, um tetraplégico que, depois de 30 anos imobilizado, conquistou o direito de morrer dignamente, tem a aparência oposta a de um super-herói.
Com esse material, o diretor Alejandro Amenábar (o mesmo de "Os Outros") criou uma obra alegremente demolidora. O vigor narrativo nasce de uma história que gira em torno de uma pessoa com o corpo destruído, Ramón Sampedro. Ele nasceu em uma aldeia costeira e cresceu trabalhando a terra com sua família, até que saiu pelo mundo para ganhar a vida.
Um acidente costeiro quase o mata. Salvo, sobrevive com o corpo paralisado, tetraplégico. Primeiro decai em um inferno de depressão, mas logo emerge, transformado pela reflexão e pela leitura, em uma espécie de colosso de força de vontade, que decide tomar o controle de seu destino e se matar. É assim que começa a aventura ética e cívica de Sampedro, encerrada com sua morte voluntária, depois de desencadear um debate moral e político que continua em curso.
Ainda sob o efeito intelectual e emocional do filme, conversamos com o diretor Amenábar e o ator principal do filme, Javier Bardem.
 

Pergunta - Vocês não temiam que o público se assustasse com um tema tão dramático?
Alejandro Amenábar -
É um drama acompanhado de risadas, com elementos de comédia; se existem lágrimas, elas deveriam surgir acompanhadas de um sorriso. Tentamos, ainda que se trate da história de um tetraplégico e envolva morte e eutanásia, falar da vida e do amor à vida. O filme tem a vida como tema, e creio que cause uma sensação de paz.

Javier Bardem - Se a pessoa chora com o filme, é preciso perguntar que tipo de pranto. Saber porque a pessoa chora e de onde nascem as lágrimas, se vêm da dor ou de uma purificação. Falar de um tema como a espiritualidade é sempre delicado.

Amenábar - Eu já tinha trabalhado com filmes de terror, buscando causar uma sensação desagradável e excitante a um só tempo. Nesse filme, procuro um efeito semelhante, mas em lugar da diversão minha busca é por uma alegria mais profunda, é fazer nascer a emoção.

Bardem - Trata-se, na verdade, de um sentimento de amor por si mesmo. Todo o filme é um filme de amor.

Amenábar - O filme talvez tenha elementos católicos, sem que se possa classificá-lo assim diretamente. A imagem de Ramón, a iconografia do personagem em sua cama, com os braços às vezes estendidos como se pendesse da cruz.

Bardem - Minha leitura do cristianismo é a de uma busca constante de uma pessoa inexistente, que está em uma altura inatingível, o que causa frustração. Isso é o catolicismo, para mim. Já Ramón tinha a idéia contrária, a de extrair essa idéia das pessoas que o visitavam em seu leito, e conduzi-la a um mundo muito mais terreno, humano.

Pergunta - O filme exibe uma morte distinta, de reconciliação.
Amenábar -
É o ato de assumir a morte, a aceitação. Para mim, isso serviu para reduzir a carga dramática de muitas coisas. Nunca perdi um parente próximo, mas um dia terei de enfrentar essa situação. E o discurso de Ramón nos ajuda muito a aceitar essa situação com serenidade.

Bardem - Eu também me espantei com a capacidade de Alejandro para contar com imagens, tão bem e de forma tão envolvente, uma coisa madura como o discurso de Ramón Sampedro sobre a vida e a morte. É um discurso que nos obriga a encarar os fatos, a considerar o fim da vida, algo de insubstituível, e que tentamos negar.

Amenábar - Para mim, a visão de Ramón Sampedro trouxe paz, me ensinou a viver aceitando o que vier. Vi-me obrigado a falar do assunto diretamente, tentamos considerar a situação em sua condição humana, ser mais pessoas que personagens.

Bardem - Um filme que parece tão duro, em teoria, foi rodado com grande tranqüilidade, um dos pouquíssimos em que senti uma sensação profunda de bem-estar, segurança, proteção e comunhão. Ditas assim, essas coisas soam pueris, mas é verdade.

Amenábar - A sombra de Ramón planava pelo estúdio.

Bardem - Quando os egos se manifestavam, na filmagem, ele falava comigo, e eu o consultava. Quando você deseja do fundo do coração entrar em um personagem dessas dimensões, necessariamente passa por uma mudança. O personagem dirigiu minha vontade e meu trabalho por três meses. Deu-me sua idéia da morte, sua idéia da dor.

Amenábar - Muitos elementos que enriquecem bastante o filme estão relacionados exatamente com o grande amor que Ramón sentia pela vida.

Bardem - Há quem possa entender que o filme é uma defesa de um homem que punha a morte acima da vida. Mas não é verdade. Ele advoga uma vida muito mais sã e digna do que aquela que vive. Quando Ramón defende a idéia de morte, é fato que tem um objetivo. E creio que ele tenha agido com uma fé tão corajosa e tão respeitável quanto a daqueles que defendem a vida pelo simples direito de existir.

Amenábar - No filme, tratamos de temas muito delicados. Nunca quisemos que fosse um trabalho sem nuances, o branco de um lado, o preto de outro. Ao defendermos o ponto de vista de Ramón, não queremos silenciar seus opositores. Haverá sempre quem nos julgue ou prejulgue porque lidamos com as razões de Ramón, mas o trabalho é sempre respeitoso para com aqueles que desejam continuar vivendo, alguns nas mesmas circunstâncias que o personagem. No fundo, o filme trata da liberdade, da liberdade de escolher. Não é algo contagioso; se esse senhor prefere partir, que esteja livre para isso.

Bardem - Ele continua capaz de desfrutar a vida não como uma pessoa qualquer, mas de maneira profunda, muito mais complexa que a maioria dos mortais. Falamos de alguém que debateu consigo mesmo durante mais de 28 anos. Alguém que primeiro deu a volta ao mundo e que a seguir se viu forçado à imobilidade. Isso dá ao personagem muito mais poder para dizer o que quer.

Amenábar - Há algo de apaixonante na família de Ramón. O irmão é quem mais se opõe à sua morte, mas na discussão fica claro que ele e a família viveram presos durante anos, como escravos daquele homem.

Bardem - Há um sacrifício real, mas também um ato de amor voluntário. Uma troca enriquecedora de experiências. E aí surge o conflito, duas vontades que se chocam.
Um dos trabalhos diários que Ramón fazia era controlar sua emoção. Porque, se deixava que esta o escravizasse, perdia o controle intelectual. Todas as emoções de Ramón passam pelo intelecto, e quando alguma coisa transborda, ele sente medo. Era importante deixar isso claro, porque eu funciono de maneira oposta, sempre me deixo levar pelo impulso. Quando Alejandro me propôs o personagem, disse que me cairia bem, por eu ser o oposto de Ramón. De toda forma, apesar de sua imobilidade, ele tem um grande poder, sua inteligência e força de vontade o tornam forte e criam espaço ao seu redor. Está reduzido à condição de um busto, mas é muito forte e acaba conseguindo seus propósitos.


Tradução de Paulo Migliacci

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