São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004 |
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Ato de amor e de morte
Em "Mar Aberto", o diretor Alejandro Amenábar conta a história real de um tetraplégico -interpretado por Javier Bardem- que luta pelo direito de morrer Pergunta - Vocês não temiam que
o público se assustasse com um tema tão dramático? Javier Bardem -
Se a pessoa chora
com o filme, é preciso perguntar
que tipo de pranto. Saber porque a
pessoa chora e de
onde nascem as
lágrimas, se vêm
da dor ou de uma
purificação. Falar
de um tema como
a espiritualidade é
sempre delicado. Amenábar - Eu já
tinha trabalhado
com filmes de terror, buscando
causar uma sensação desagradável e
excitante a um só
tempo. Nesse filme, procuro um
efeito semelhante,
mas em lugar da
diversão minha
busca é por uma
alegria mais profunda, é fazer nascer a emoção. Bardem - Trata-se, na verdade, de
um sentimento de
amor por si mesmo. Todo o filme
é um filme de amor. Amenábar - O filme talvez tenha
elementos católicos, sem que se
possa classificá-lo assim diretamente. A imagem de Ramón, a
iconografia do personagem em
sua cama, com os braços às vezes
estendidos como se pendesse da
cruz. Bardem - Minha leitura do cristianismo é a de uma busca constante de uma pessoa inexistente,
que está em uma altura inatingível, o que causa frustração. Isso é
o catolicismo, para mim. Já Ramón
tinha a idéia contrária, a de extrair
essa idéia das pessoas que o visitavam em seu leito,
e conduzi-la a um
mundo muito
mais terreno, humano. Pergunta - O filme exibe uma morte distinta, de reconciliação. Bardem - Eu
também me espantei com a capacidade de Alejandro para contar com imagens,
tão bem e de forma tão envolvente, uma coisa madura como o discurso de Ramón Sampedro sobre
a vida e a morte. É um discurso
que nos obriga a encarar os fatos,
a considerar o fim da vida, algo de
insubstituível, e que tentamos negar. Amenábar - Para mim, a visão de
Ramón Sampedro trouxe paz, me
ensinou a viver aceitando o que
vier. Vi-me obrigado a falar do assunto diretamente, tentamos considerar a situação
em sua condição
humana, ser mais
pessoas que personagens. Bardem - Um filme que parece tão
duro, em teoria,
foi rodado com
grande tranqüilidade, um dos pouquíssimos em que
senti uma sensação profunda de
bem-estar, segurança, proteção e
comunhão. Ditas
assim, essas coisas
soam pueris, mas
é verdade. Amenábar - A
sombra de Ramón
planava pelo estúdio. Bardem - Quando os egos se manifestavam, na filmagem, ele falava
comigo, e eu o
consultava. Quando você deseja do
fundo do coração
entrar em um personagem dessas
dimensões, necessariamente passa por uma mudança. O personagem dirigiu minha vontade e meu trabalho por
três meses. Deu-me sua idéia da
morte, sua idéia da dor. Amenábar - Muitos elementos
que enriquecem bastante o filme
estão relacionados exatamente
com o grande amor que Ramón
sentia pela vida. Bardem - Há quem possa entender que o filme é uma defesa de
um homem que punha a morte
acima da vida. Mas não é verdade.
Ele advoga uma vida muito mais
sã e digna do que
aquela que vive.
Quando Ramón
defende a idéia de
morte, é fato que
tem um objetivo.
E creio que ele tenha agido com
uma fé tão corajosa e tão respeitável
quanto a daqueles
que defendem a
vida pelo simples
direito de existir. Amenábar - No
filme, tratamos de
temas muito delicados. Nunca quisemos que fosse
um trabalho sem
nuances, o branco
de um lado, o preto de outro. Ao
defendermos o
ponto de vista de
Ramón, não queremos silenciar
seus opositores.
Haverá sempre
quem nos julgue
ou prejulgue porque lidamos com
as razões de Ramón, mas o trabalho é sempre respeitoso para com aqueles que desejam continuar vivendo, alguns
nas mesmas circunstâncias que o
personagem. No fundo, o filme
trata da liberdade, da liberdade de
escolher. Não é algo contagioso;
se esse senhor prefere partir, que
esteja livre para isso. Bardem - Ele continua capaz de
desfrutar a vida não como uma
pessoa qualquer, mas de maneira
profunda, muito mais complexa
que a maioria dos mortais. Falamos de alguém que debateu consigo mesmo durante mais de 28
anos. Alguém que primeiro deu a
volta ao mundo e que a seguir se
viu forçado à imobilidade. Isso dá
ao personagem muito mais poder
para dizer o que quer. Amenábar - Há algo de apaixonante na família de Ramón. O irmão é quem mais se opõe à sua
morte, mas na discussão fica claro
que ele e a família viveram presos
durante anos, como escravos daquele homem. Bardem - Há um sacrifício real,
mas também um ato de amor voluntário. Uma troca enriquecedora de experiências. E aí surge o
conflito, duas vontades que se
chocam. Tradução de Paulo Migliacci Texto Anterior: Drauzio Varella: Gravidez indesejada e violência urbana Próximo Texto: Frases Índice |
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