São Paulo, segunda-feira, 04 de setembro de 2006

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NELSON ASCHER

Um espetáculo moderno


A alemã Pina Bausch preenche de sentidos os espaços do palco em sua nova montagem

O NOVO espetáculo da coreógrafa alemã Pina Bausch, "Para as Crianças de Ontem, Hoje e Amanhã", é longo e extenuante -não só para os bailarinos. Suas três horas exigem da platéia esforço e atenção constantes. Os quais, aliás, recompensam plenamente. Não se trata, portanto, de experiência digestiva ou relaxante e, descontando o intervalo bem-vindo, esta, surpreendendo e sobressaltando o espectador a cada gesto, tampouco lhe concede um momento de pausa.
Embora o nome da peça remeta às crianças, não são elas seu público preferencial nem é seu mundo o tematizado. Apresenta-se nela, isto sim, um mundo semi-independente como é o infantil, um universo paralelo cujos habitantes não ignoram a existência do maior que contém o deles. Essa dimensão autônoma é meticulosamente construída.
O modo como o vasto espaço do palco é aproveitado, e a maneira como o deslocamento de suas paredes falsas ou a irrupção imprevista dos bailarinos, aqui e ali, em pontos inesperados, preenchem-lhe o vazio, multiplicando as perspectivas, nada têm de arbitrário nem há um instante em que esse espaço não esteja carregado de sentido.
Vale a pena notar que, se de quando em quando palco e platéia se interpenetram, isso não decorre de um desejo de abolir a moldura que os separa, mas constitui antes um estratagema destinado a atrair a realidade externa para dentro de seu espaço circunscrito, o da arte em questão. O mundo do palco não invade o da platéia de forma simples e agressiva, como nos cansamos de ver no teatro contemporâneo.
Caso assim fosse, tal ilusão equivaleria à sugestão demagógica de que, porque os bailarinos podem descer à platéia, qualquer membro desta poderia igualmente subir ao palco, tese refutada pelo virtuosismo explícito do elenco que, ao ostentá-lo, reafirma a autoconsciência dos procedimentos artísticos. Sublinha-se, afinal, a separação entre ambos os universos, se bem que o recém-criado se mostre disposto a sugar tudo o que possa do real e cotidiano.
O espetáculo de Pina Bausch é tipicamente moderno, não pós-moderno. A primeira abordagem revela um apetite pelo real, se bem que não sob a forma de um realismo mimético e submisso, mas, sim, enquanto anseio de converter em artísticos o maior número possível de elementos que lhe são externos. Como a música moderna lançava mão do ruído e a pintura já se valeu de colagens, o espetáculo posto em cena pela coreógrafa pretende tornar "dançáveis" gestos e movimentos de todo tipo. Em sua essência, o recurso, o mais modernista de todos, chama-se "estranhamento". Sua contrapartida é a familiarização que se alcança neste caso pela repetição metódica do que antes parecia estranho.
Já a pós-modernidade é o reino do "meta", da arte sobre a arte, da indistinção entre esta e a crítica, do pastiche e de uma referencialidade assistemática. A peça, não obstante recorre a trejeitos pós-modernos, como a mescla de gêneros (por exemplo, quando, nos passos de uma bailarina, o estilo romântico se transforma em dança indiana), não se deixa dominar por eles e, de modo similar, não é porque utiliza a voz e os diálogos que se reduz ao que estes digam. A fala é uma minúcia no seu conjunto, um elemento expressivo, porém não explicativo.
O conjunto vai se compondo de gestos e movimentos que se aglutinam em seqüências maiores que são, por seu turno, repetidas ou ecoadas em variações. Se essas seqüências querem ou não "dizer" algo, ou seja, se remetem a qualquer coisa externa a elas, se elas se associam a coisas diversas e são traduzíveis nesses outros termos que não os seus, é algo em aberto, que cada espectador pode, se quiser, interpretar como quiser.
Independentemente disso (quer dizer: se tal ou qual seqüência evoca tristeza, desespero, júbilo etc.), elas acabam se conjugando e apontando para uma sintaxe própria, uma sintaxe que permite relacionar este ou aquele gesto, esta ou aquela seqüência de movimentos a outros e outras, resultando numa variedade e diversidade expressiva, onde "expressiva" importa menos do que "variedade" e a coerência interna que vai tomando forma.
O que há de inteiro no espetáculo é precisamente isso: embora ele se valha de referências exteriores, sobretudo a sentimentos, sensações e climas emocionais, assim como à linguagem convencional da dança, estilizando-a, desenvolvendo-o, parodiando-a etc., o que na sua extensão se cria é um mundo próprio, tão rico e diverso como coerente e orgânico. A diretora constrói diante de nós (e para nós) um universo não necessariamente traduzível ou interpretável, mas ainda assim inteligível, habitável nos seu próprios termos e, sobretudo, capaz de acolher a inteligência.


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