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NELSON ASCHER
Um espetáculo moderno
A alemã Pina Bausch
preenche de sentidos
os espaços do palco
em sua nova montagem
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O NOVO espetáculo da coreógrafa alemã Pina Bausch,
"Para as Crianças de Ontem,
Hoje e Amanhã", é longo e extenuante -não só para os bailarinos.
Suas três horas exigem da platéia esforço e atenção constantes. Os quais,
aliás, recompensam plenamente.
Não se trata, portanto, de experiência digestiva ou relaxante e, descontando o intervalo bem-vindo, esta,
surpreendendo e sobressaltando o
espectador a cada gesto, tampouco
lhe concede um momento de pausa.
Embora o nome da peça remeta às
crianças, não são elas seu público
preferencial nem é seu mundo o tematizado. Apresenta-se nela, isto
sim, um mundo semi-independente
como é o infantil, um universo paralelo cujos habitantes não ignoram a
existência do maior que contém o
deles. Essa dimensão autônoma é
meticulosamente construída.
O modo como o vasto espaço do
palco é aproveitado, e a maneira como o deslocamento de suas paredes
falsas ou a irrupção imprevista dos
bailarinos, aqui e ali, em pontos
inesperados, preenchem-lhe o vazio, multiplicando as perspectivas,
nada têm de arbitrário nem há um
instante em que esse espaço não esteja carregado de sentido.
Vale a pena notar que, se de quando em quando palco e platéia se interpenetram, isso não decorre de
um desejo de abolir a moldura que
os separa, mas constitui antes um
estratagema destinado a atrair a realidade externa para dentro de seu
espaço circunscrito, o da arte em
questão. O mundo do palco não invade o da platéia de forma simples e
agressiva, como nos cansamos de
ver no teatro contemporâneo.
Caso assim fosse, tal ilusão equivaleria à sugestão demagógica de
que, porque os bailarinos podem
descer à platéia, qualquer membro
desta poderia igualmente subir ao
palco, tese refutada pelo virtuosismo explícito do elenco que, ao ostentá-lo, reafirma a autoconsciência
dos procedimentos artísticos. Sublinha-se, afinal, a separação entre ambos os universos, se bem que o recém-criado se mostre disposto a sugar tudo o que possa do real e cotidiano.
O espetáculo de Pina Bausch é tipicamente moderno, não pós-moderno. A primeira abordagem revela
um apetite pelo real, se bem que não
sob a forma de um realismo mimético e submisso, mas, sim, enquanto
anseio de converter em artísticos o
maior número possível de elementos que lhe são externos. Como a
música moderna lançava mão do
ruído e a pintura já se valeu de colagens, o espetáculo posto em cena pela coreógrafa pretende tornar "dançáveis" gestos e movimentos de todo
tipo. Em sua essência, o recurso, o
mais modernista de todos, chama-se "estranhamento". Sua contrapartida é a familiarização que se alcança
neste caso pela repetição metódica
do que antes parecia estranho.
Já a pós-modernidade é o reino do
"meta", da arte sobre a arte, da indistinção entre esta e a crítica, do pastiche e de uma referencialidade assistemática. A peça, não obstante recorre a trejeitos pós-modernos, como a mescla de gêneros (por exemplo, quando, nos passos de uma bailarina, o estilo romântico se transforma em dança indiana), não se
deixa dominar por eles e, de modo
similar, não é porque utiliza a voz e
os diálogos que se reduz ao que estes
digam. A fala é uma minúcia no seu
conjunto, um elemento expressivo,
porém não explicativo.
O conjunto vai se compondo de
gestos e movimentos que se aglutinam em seqüências maiores que
são, por seu turno, repetidas ou
ecoadas em variações. Se essas seqüências querem ou não "dizer" algo, ou seja, se remetem a qualquer
coisa externa a elas, se elas se associam a coisas diversas e são traduzíveis nesses outros termos que não os
seus, é algo em aberto, que cada espectador pode, se quiser, interpretar
como quiser.
Independentemente disso (quer
dizer: se tal ou qual seqüência evoca
tristeza, desespero, júbilo etc.), elas
acabam se conjugando e apontando
para uma sintaxe própria, uma sintaxe que permite relacionar este ou
aquele gesto, esta ou aquela seqüência de movimentos a outros e outras,
resultando numa variedade e diversidade expressiva, onde "expressiva" importa menos do que "variedade" e a coerência interna que vai tomando forma.
O que há de inteiro no espetáculo
é precisamente isso: embora ele se
valha de referências exteriores, sobretudo a sentimentos, sensações e
climas emocionais, assim como à
linguagem convencional da dança,
estilizando-a, desenvolvendo-o, parodiando-a etc., o que na sua extensão se cria é um mundo próprio, tão
rico e diverso como coerente e orgânico. A diretora constrói diante de
nós (e para nós) um universo não
necessariamente traduzível ou interpretável, mas ainda assim inteligível, habitável nos seu próprios termos e, sobretudo, capaz de acolher a
inteligência.
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