São Paulo, sexta, 4 de setembro de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO

"Ah, essas palavras que me faltam...'

GERALD THOMAS
de Graz (Áustria)

Quando, no próximo dia 3 de outubro, a Alemanha estiver comemorando a sua mais recente unificação e essa cidade estiver embebida na mórbida memória de que, há 60 anos, se anexou voluntariamente ao regime nazista (um dia antes de Hitler anexar a Áustria inteira), nós, na Ópera de Graz, estaremos estrelando uma das obras mais polêmicas, mais complexas deste século e uma espécie de resposta a todos os atos bestiais cometidos nas "Germânias" deste século: a ópera incompleta de Arnold Schoenberg "Moisés e Arão".
Essa ópera é a mais dura crítica do repertório "clássico-contemporâneo" quando se trata de querer fazer uma deliberada retratação "fim de século" dos abusos humanos e dos absurdos ideológicos cometidos em nome de um líder ou de um deus, na Europa Central nazista ou nas uniões comunistas, nestes últimos cem anos de hesitação pura! Encenar essa ópera traz a diretor, maestro e elenco (e ao público, espero) um pouco de sentimento turbulento que fez com que a arte e a ideologia deste século tomassem rumos tão extremados, tão diversos e em tão curto espaço de tempo.
A estréia aqui na Ópera de Graz vai trazer barulho, sem dúvida, pois a maior parte das questões que resultaram em tanta tragédia ainda perambula por aí ou está escondida diretamente sob a superfície mais óbvia e imediata. Nenhuma grande questão foi respondida, somente derrotada. Mas quem vai ousar se rebelar contra nossa estréia? Grupos nazistas em defesa do "Levante de Graz"? Quem vai ousar levantar sua voz contra uma discussão altamente teológica entre dois seres da antiguidade bíblica?
O disfarce bíblico é justamente a belíssima emboscada construída por Schoenberg. Afinal, "Moisés e Arão" é uma obra tão complexa e de conteúdo dramatúrgico tão ramificado que fazer dele uma leitura monocromática seria, no mínimo, uma imbecilidade absoluta.
Schoenberg pega as figuras bíblicas emprestadas para colocar em cena aberta uma discussão fundamental entre o espiritualismo e o materialismo. Mas a questão não se restringe às crenças religiosas ou políticas, e sua abrangência acaba por desnudar a humanidade e sua ridícula necessidade por crenças. A longa escapada do povo judeu da tirania dos faraós egípcios, em busca da terra prometida, acaba sendo uma longa viagem de avaliação pelo tempo, que começa quando o artista moderno destrói a sua musa, estilhaça sua inspiração e desafina seus acordes harmônicos.
Schoenberg faz que seus dois profetas desfilem pela recente história da arte e das crenças modernas, esbarrando em questões éticas e formais que artistas vivos ainda hoje não conseguem responder. A ópera faz da discussão bíblica um espelho claro de nossa sociedade atual, cada vez mais exposta a burrices do show business, engodos e mentiras políticas linda e suntuosamente empacotados.
"Queremos amá-lo, queremos acreditar nele", berra o coro das mulheres. "Voltem ao trabalho, senão ele vai ser muito mais duro", responde o coro dos homens, numa dodecafonia que, além de empolgar seu criador-invento, Arnold Schoenberg, provava que a maior obra de arte sempre é, e sempre será, aquela que contém dentro dela o diálogo dos opostos, ou seja, um diálogo entre uma espécie de Moisés e uma espécie de Arão.
"Os crentes enxergarão a verdade, e, se a verdade se apresentar de forma crível, não haverá opção senão acreditar nela", profetiza o demagógico Arão. Será que a publicidade moderna estava de braços dados com Arão?
Se Schoenberg era visionário, nós somos meramente as vítimas de sua terrível visão. Ou não é verdade que convivemos, com uma simples troca de canal, com assuntos tão extremos como um desfile de moda (em busca de uma verdade obviamente mentirosa) e um evangelista chutando uma estatueta qualquer em busca de uma (falsa) verdade, sem nem nos tocarmos?
"A realidade é fria e não adianta esquentá-la", diz um tenor no meio do primeiro ato. Schoenberg provoca sua própria classe artística, ridicularizando o excesso de psicanálise e existencialismo a que se expunham diversos artistas no início deste século a fim de ressuscitar uma alma artística esfriada pela corrida do modernismo em encontrar uma forma pura, limpa, verdadeira, destituída de qualquer artifício.
As questões expostas em "Moisés e Arão" também são de deixar qualquer encenador dividido, acanhado, derrotado. Afinal, dirigir essa ópera justamente neste lugar, que viu, exercitou e massificou toda a espécie de reação humana, é de enlouquecer. Ou se deixa entrar tudo nela, cada símbolo, cada produto, cada artigo e cada ídolo, ou se faz uma destilação tão severa da história recente que se vai parar no mesmo deserto em que os dois profetas tiveram seu encontro.
Sim, Schoenberg viveu a virada do século, a transformação da arte num utensílio de entretenimento público, das artes ideologicamente tecidas para as massas. Schoenberg foi, ele mesmo, vítima do surgimento de uma geração bem pobre de críticos de arte, atuando em defesa do denominador comum mais baixo para a mais baixa e primitiva compreensão dessas massas. Schoenberg também testemunhou o oposto, ou seja, o artista se embrulhando em seu próprio invólucro, se divorciando das massas, da compreensibilidade e dos críticos, fazendo de sua arte um berro solitário, dissonante, um berro do alto de uma montanha solitária, o monte Sinai.
Não é a toa que Schoenberg sentiu pavor daquilo que estava no futuro de Moisés e Arão e não terminou sua obra. "Palavras", balbucia Moisés no final do segundo ato, "ah, essas palavras que me faltam....".
Esse mesmo palco da Ópera de Graz, que já teve Adolf Hitler em pé discursando e um povo de pé gritando de orgulho por ter aderido ao seu regime desgraçado, vai ver um Moisés sentado numa passarela de um desfile de moda, arrasado, acometido de uma estonteante explosão de impotência, e, precisamente no momento em que Helmut Kohl erguer sua taça de champanhe em direção ao resto da Europa, ele vai olhar o maestro e dizer: "Palavras, ah, essas palavras que me faltam".

E-mail: geraldthomas@uol.com.br



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