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FORNADA DO MILÊNIO
"Ah, essas palavras que me faltam...'
GERALD THOMAS
de Graz (Áustria)
Quando, no próximo dia 3 de
outubro, a Alemanha estiver
comemorando a sua mais recente unificação e essa cidade
estiver embebida na mórbida
memória de que, há 60 anos, se
anexou voluntariamente ao regime nazista (um dia antes de
Hitler anexar a Áustria inteira), nós, na Ópera de Graz, estaremos estrelando uma das
obras mais polêmicas, mais
complexas deste século e uma
espécie de resposta a todos os
atos bestiais cometidos nas
"Germânias" deste século: a
ópera incompleta de Arnold
Schoenberg "Moisés e Arão".
Essa ópera é a mais dura crítica do repertório "clássico-contemporâneo" quando se trata
de querer fazer uma deliberada
retratação "fim de século" dos
abusos humanos e dos absurdos
ideológicos cometidos em nome
de um líder ou de um deus, na
Europa Central nazista ou nas
uniões comunistas, nestes últimos cem anos de hesitação pura! Encenar essa ópera traz a
diretor, maestro e elenco (e ao
público, espero) um pouco de
sentimento turbulento que fez
com que a arte e a ideologia
deste século tomassem rumos
tão extremados, tão diversos e
em tão curto espaço de tempo.
A estréia aqui na Ópera de
Graz vai trazer barulho, sem
dúvida, pois a maior parte das
questões que resultaram em
tanta tragédia ainda perambula por aí ou está escondida diretamente sob a superfície mais
óbvia e imediata. Nenhuma
grande questão foi respondida,
somente derrotada. Mas quem
vai ousar se rebelar contra nossa estréia? Grupos nazistas em
defesa do "Levante de Graz"?
Quem vai ousar levantar sua
voz contra uma discussão altamente teológica entre dois seres
da antiguidade bíblica?
O disfarce bíblico é justamente a belíssima emboscada construída por Schoenberg. Afinal,
"Moisés e Arão" é uma obra tão
complexa e de conteúdo dramatúrgico tão ramificado que
fazer dele uma leitura monocromática seria, no mínimo,
uma imbecilidade absoluta.
Schoenberg pega as figuras bíblicas emprestadas para colocar em cena aberta uma discussão fundamental entre o espiritualismo e o materialismo. Mas
a questão não se restringe às
crenças religiosas ou políticas, e
sua abrangência acaba por desnudar a humanidade e sua ridícula necessidade por crenças.
A longa escapada do povo judeu da tirania dos faraós egípcios, em busca da terra prometida, acaba sendo uma longa
viagem de avaliação pelo tempo, que começa quando o artista moderno destrói a sua musa,
estilhaça sua inspiração e desafina seus acordes harmônicos.
Schoenberg faz que seus dois
profetas desfilem pela recente
história da arte e das crenças
modernas, esbarrando em
questões éticas e formais que
artistas vivos ainda hoje não
conseguem responder. A ópera
faz da discussão bíblica um espelho claro de nossa sociedade
atual, cada vez mais exposta a
burrices do show business, engodos e mentiras políticas linda
e suntuosamente empacotados.
"Queremos amá-lo, queremos
acreditar nele", berra o coro
das mulheres. "Voltem ao trabalho, senão ele vai ser muito
mais duro", responde o coro dos
homens, numa dodecafonia
que, além de empolgar seu criador-invento, Arnold Schoenberg, provava que a maior obra
de arte sempre é, e sempre será,
aquela que contém dentro dela
o diálogo dos opostos, ou seja,
um diálogo entre uma espécie
de Moisés e uma espécie de
Arão.
"Os crentes enxergarão a verdade, e, se a verdade se apresentar de forma crível, não haverá opção senão acreditar nela", profetiza o demagógico
Arão. Será que a publicidade
moderna estava de braços dados com Arão?
Se Schoenberg era visionário,
nós somos meramente as vítimas de sua terrível visão. Ou
não é verdade que convivemos,
com uma simples troca de canal, com assuntos tão extremos
como um desfile de moda (em
busca de uma verdade obviamente mentirosa) e um evangelista chutando uma estatueta
qualquer em busca de uma (falsa) verdade, sem nem nos tocarmos?
"A realidade é fria e não
adianta esquentá-la", diz um
tenor no meio do primeiro ato.
Schoenberg provoca sua própria classe artística, ridicularizando o excesso de psicanálise e
existencialismo a que se expunham diversos artistas no início
deste século a fim de ressuscitar
uma alma artística esfriada pela corrida do modernismo em
encontrar uma forma pura,
limpa, verdadeira, destituída
de qualquer artifício.
As questões expostas em
"Moisés e Arão" também são de
deixar qualquer encenador dividido, acanhado, derrotado.
Afinal, dirigir essa ópera justamente neste lugar, que viu,
exercitou e massificou toda a
espécie de reação humana, é de
enlouquecer. Ou se deixa entrar
tudo nela, cada símbolo, cada
produto, cada artigo e cada
ídolo, ou se faz uma destilação
tão severa da história recente
que se vai parar no mesmo deserto em que os dois profetas tiveram seu encontro.
Sim, Schoenberg viveu a virada do século, a transformação
da arte num utensílio de entretenimento público, das artes
ideologicamente tecidas para
as massas. Schoenberg foi, ele
mesmo, vítima do surgimento
de uma geração bem pobre de
críticos de arte, atuando em defesa do denominador comum
mais baixo para a mais baixa e
primitiva compreensão dessas
massas. Schoenberg também
testemunhou o oposto, ou seja,
o artista se embrulhando em
seu próprio invólucro, se divorciando das massas, da compreensibilidade e dos críticos,
fazendo de sua arte um berro
solitário, dissonante, um berro
do alto de uma montanha solitária, o monte Sinai.
Não é a toa que Schoenberg
sentiu pavor daquilo que estava
no futuro de Moisés e Arão e
não terminou sua obra. "Palavras", balbucia Moisés no final
do segundo ato, "ah, essas palavras que me faltam....".
Esse mesmo palco da Ópera
de Graz, que já teve Adolf Hitler em pé discursando e um povo de pé gritando de orgulho
por ter aderido ao seu regime
desgraçado, vai ver um Moisés
sentado numa passarela de um
desfile de moda, arrasado, acometido de uma estonteante explosão de impotência, e, precisamente no momento em que
Helmut Kohl erguer sua taça de
champanhe em direção ao resto
da Europa, ele vai olhar o
maestro e dizer: "Palavras, ah,
essas palavras que me faltam".
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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