São Paulo, Sábado, 04 de Setembro de 1999
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O século de Freud vem ao Brasil

Reprodução
Sigmund Freud, em foto de 1929, segurando um charuto, que fumou durante toda a sua vida


FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local

Chega ao Brasil dentro de um ano, em setembro do ano 2000, a exposição "Freud: Conflito & Cultura", a maior já realizada sobre o fundador da psicanálise, que nos EUA suscitou reações enérgicas de círculos intelectuais antifreudianos e esteve por um fio de ser cancelada. Ela fica no Masp (Museu de Arte de São Paulo) de 26 de setembro a 28 de novembro, viabilizada por uma parceria entre o museu e a Folha.
Na mostra, estão reunidos não só objetos do universo pessoal de Sigmund Freud (1856-1939), a começar pelo famoso divã onde primeiro se praticou a psicanálise, como uma vasta amostra do legado freudiano disperso pelo século. Dentro, mas sobretudo fora dos círculos psicanalíticos.
Quase todo mundo acredita hoje que os sonhos têm um sentido oculto; fala-se em ato falho como um sintoma; diz-se que fulano tem um enorme superego, ou que beltrano sofre de complexo de Édipo. São indícios da popularidade (e da vulgarização) de conceitos da psicanálise, de sua inserção na vida cotidiana e na linguagem corrente, dados que a exposição procura reunir e ilustrar.
São ao todo 180 objetos, 108 fotografias e 90 videoclipes, aos quais não faltam humor e ironia, em colagens que reúnem desenhos dos Flinstones e dos Simpsons, misturados a trechos de filmes de Alfred Hitchcock e Fritz Lang, entre outros. A mostra está organizada em três grandes blocos que acompanham a evolução do pensamento freudiano. São eles: "Os Anos de Formação", "O Indivíduo: Terapia e Teoria" e "Do Indivíduo à Sociedade".
A iniciativa de trazê-la ao Brasil partiu do psicanalista Leopold Nosek, ex-presidente e atual diretor cultural da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. A Folha e o Masp encamparam a idéia e buscam agora o complemento do patrocínio da exposição, cujo custo está avaliado hoje em torno de R$ 600 mil.
"Estamos empenhados, junto com o Masp, na captação de recursos para o projeto. Nossa motivação vem do interesse de oferecermos para São Paulo essa importante exposição antes dos principais países da Europa", diz Eduardo Santos, diretor-adjunto de Marketing da Empresa Folha da Manhã S/A, que edita a Folha.
Segundo Nosek, "trata-se, sim, de uma exposição de perfil norte-americano, mas que, além de exibir coisas jamais vistas, tem o mérito de ter sido organizada fora das brigas psicanalíticas. A psicanálise hoje pertence à cultura, não é propriedade dos psicanalistas".

Reações contra Freud
Nos EUA, houve de fato briga, mas contra os psicanalistas. A exposição deveria abrir na Biblioteca do Congresso norte-americano, em Washington, em setembro de 96. Acabou sendo inaugurada apenas em outubro de 98, porque um grupo de intelectuais a considerou apologética demais e disse que não fazia sentido usar o dinheiro do contribuinte para divulgar idéias ultrapassadas, que muitos acusaram de charlatanismo. Houve até um abaixo-assinado contra a mostra, organizado pelo historiador Peter Swales e subscrito, entre outros, pelo renomado neurologista Oliver Sacks.
O curador da exposição, Michael Roth, fez, então, algumas concessões para viabilizar a exposição. Logo na entrada, por exemplo, um dos painéis pergunta: "Ele foi um cientista, um escritor, um gênio ou uma fraude?".
Antes de chegar a São Paulo, "Freud: Conflito & Cultura" deverá ter rodado por apenas quatro cidades: Washington (outubro de 98 a janeiro de 99), Nova York (janeiro a agosto de 99), Viena (novembro de 99 a fevereiro de 2000) e Los Angeles (março a maio).
Em São Paulo, porém, ela será acompanhada de uma mostra paralela, também no Masp, sobre o freudismo no Brasil e os elos da psicanálise com o movimento modernista (leia mais à pág. 4-3).
Nosek vê na exposição uma oportunidade preciosa para discutir o legado daquele que, ao lado de Karl Marx, moldou mais do que qualquer outro pensador o imaginário do século 20. "A idéia de que o indivíduo é determinado por forças que lhe são estranhas, de que ele não controla inteiramente seu destino, faz eco", diz Nosek, "à idéia marxista de que a história se faz pelas costas e à revelia dos sujeitos históricos".

"Eu trouxe a peste"
O psicanalista Renato Mezan não conhece a exposição, mas vê com entusiasmo sua vinda ao Brasil. "Em geral, essas coisas de americanos são muito bem feitas, cheias de explicações, úteis tanto para quem já conhece como para quem quer conhecer Freud", diz.
Irritado com a reação contrária à mostra nos EUA, Mezan atribui o fato ao ambiente intelectual daquele país, dominado por um "positivismo estreito", mas prevê que "muito provavelmente ecos da discussão de lá irão reaparecer por aqui, importados". "Quem não achar interessante que não vá", diz Mezan, que em seu livro mais recente, "Tempo de Muda -Ensaios de Psicanálise", dedica um texto à polêmica entre a psicanálise e as neurociências, segundo ele "uma questão mal colocada".
Mezan diz sentir "um frio na espinha" quando vê pessoalmente o divã de Freud. "Isso torna sensíveis experiências que só temos intelectualmente; é como ver a caneta com que Getúlio (Vargas) assinou a carta-testamento".
A psicanalista Maria Rita Kehl vê na celeuma em torno da exposição um sintoma da ambivalência dos EUA diante da psicanálise. "Há fascínio, mas ao mesmo tempo repulsa, do tipo "temos uma resposta mais eficaz e pragmática para isso'", diz Kehl. Ela lembra que Freud, em visita ao país, disse: "Vim para trazer a peste".
As relações de Freud com os EUA sempre foram hostis. Ele frequentemente se referia aos norte-americanos como "aqueles selvagens" e chegou a escrever que "a análise combina com os americanos assim como uma camisa branca combina com um corvo".
Segundo Kehl, mais do que um pensador, Freud é um "herói deste século". Não porque, completa ela, "desvendou o grande enigma do inconsciente (ele não será nunca passado a limpo pela psicanálise), mas porque arriscou como ninguém e abriu um caminho único, no qual se começou a falar e escutar coisas que nunca haviam sido faladas e escutadas, com efeitos sobre toda a cultura, até com suas contra-indicações".


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