São Paulo, sábado, 4 de outubro de 1997.




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NEOLIBERALISMO EM ROMANCE
Argentina também foi modelo para o país-ditadura criado por Steven Lukes
Militária é inspirado no Brasil de 1976

especial para a Folha

Leia, a seguir, a continuação da entrevista concedida à Folha pelo escritor britânico Steven Lukes.
Lukes, 56, autor do livro "A Curiosa Iluminação do Professor Caritat - Uma Comédia de Idéias", que a editora Revan lança agora no Brasil, fala sobre ditaduras latino-americanas, separatismo, socialismo e outros "ismos" atuais. (MARCELO RUBENS PAIVA)

Folha - Militária, o país-ditadura, é inspirado nas ditaduras latino-americanas?
Steven Lukes -
Passei alguns dias terríveis na Argentina. Era o verão de 76. Visitei o Brasil depois. Militária é o que vi nesses dois países. Tanto que usei o símbolo da repressão argentina, o carro Ford Falcon.
Folha - Em sua opinião, existe alguma Militária, hoje em dia?
Lukes -
Aspectos de Militária estão espalhados em novas e velhas ditaduras, como nos antigos países socialistas do Leste Europeu e como atualmente em Burma: a batida na porta no meio da noite, a falta de justificativa ou motivo para te levarem preso.
Folha - Utilitária representa a social-democracia com movimentos separatistas, como Espanha ou Irlanda?
Lukes -
Utilitária é o lugar onde, para se atingir o bem-estar social, são criadas regras com extremo fanatismo. A existência de separatistas não é essencial, apesar da obsessão deles pelo passado.
Mas a filosofia do bem-estar leva a loucuras, como as acusações atuais sobre o governo sueco, de ter esterilizado mulheres deficientes. E isso é um caso verídico, não uma sátira.
Folha - Qual a razão do separatismo em países desenvolvidos?
Lukes -
Identidades baseadas no passado são um refúgio contra as pressões da modernidade.
Folha - No livro, Proletária está esmagado entre dois países. Parece um cantão suíço. O comunismo se resume a isso?
Lukes -
Proletária é fisicamente pequena, mas um sonho pode ocupar o espaço que se quiser. Isso me lembrou uma antiga piada russa. "O socialismo pode ser construído na Suíça?" "Sim, camarada, mas para quê?"
Folha - O retrato de Libertária, o país neoliberal, é cruel. Filas de desempregados, sem-teto, mendigos. O desemprego e a exclusão social são inerentes ao neoliberal?
Lukes -
Libertária é um Estado de livre concorrência ao extremo. Num lugar desses, por que alguém deveria se preocupar se existe ou não emprego para todos?


"Um pessimista é um otimista bem informado, e eu sou apenas moderadamente bem informado"

Folha - No final, o personagem central chega a uma montanha com vários caminhos. Qual é o próximo passo?
Lukes -
No final, o herói percebe que, colhendo as experiências do seu passado, não existe muita esperança no futuro.
Folha - Existe a "sociedade ideal" pensada por Kant?
Lukes -
É uma boa pergunta. E é o que meu personagem se pergunta todo o tempo. Se ele não sabe responder, por que eu saberia?
Folha - O sr. é um pessimista?
Lukes -
Pessimista? Um pessimista é um otimista bem informado, e eu sou apenas moderadamente bem informado.
Folha - O sr. é adepto da teoria do "Fim da História", do historiador Francis Fukuyama?
Lukes -
Uma vez escrevi uma crítica sobre o livro dele. Eu dizia que a idéia de fim de história era melhor do que eu temia e as pessoas diziam. Na sua tese, Fukuyama afirma que o capitalismo liberal-democrático é, em termos simples, o sistema ideal.
Eu sou, desde o começo, relutante à sua euforia. Mas capitalismo liberal ainda não existe. As ameaças globais, como desemprego, pobreza e desigualdade, não mudaram. Sem mencionar a ascensão de nacionalismos e de ditaduras religiosas. Nada será o fim de qualquer coisa.
Folha - Em qual dos países que inventou o sr. moraria?
Lukes -
Continuaria a viver na Itália, que eu chamaria de Ilusária, um país onde nada é como se parece aos visitantes, mesmo aos visitantes residentes.
Folha - Qual é o ideário da nova esquerda?
Lukes -
As idéias da esquerda são sólidas e estão sempre se renovando. A derrocada do comunismo é um desafio maravilhoso para se repensar, assim como a crise dos países social-democratas.
Folha - O sr. é ou foi socialista ou marxista?
Lukes -
Não acredito que já tenha usado a palavra "marxista" para descrever minhas opiniões ou meu jeito de ser. Também nunca usei o termo "liberal".
Socialista soa melhor, mas não gosto deste tipo de classificação, especialmente quando se olham os terríveis desastres históricos gerados por estas classificações.




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