São Paulo, Segunda-feira, 04 de Outubro de 1999
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ARTES PLÁSTICAS

Bienal em cartaz até 7 de novembro revê obras conhecidas e revela nomes para a cena contemporânea

Liverpool dá novas leituras para a arte

CELSO FIORAVANTE
enviado especial a Liverpool

Apesar de ser ainda uma recém-nascida, a Bienal de Liverpool já demonstra em sua primeira edição que pode dar passos largos e firmes no terreno da arte contemporânea.
Bem organizada, ocupando espaços públicos alheios à arte e curada com pertinência e sem arrogância por Anthony Bond, a Bienal de Liverpool mostrou-se jovial e inteligente. Mesmo obras vistas com certa frequência foram bem apresentadas e ganharam um brilho novo.

Destaques
A colombiana Doris Salcedo tem seus trabalhos apresentados na gigantesca catedral presbiteriana da cidade. O clima majestoso do espaço enriqueceu ainda mais suas solenes esculturas.
Salcedo cria esculturas com móveis que se interpenetram: armários dividem o mesmo espaço com uma cama, cadeiras entram no armário. Salcedo realiza essa simbiose com o uso de grandes massas de cimento, nas quais insere ainda ossos e roupas, como se buscasse sepultar para assim preservar a memória.
A artista não nega sua origem colombiana e sua afeição pelo realismo fantástico, que marca a cultura de seu país. Basta olhar para suas esculturas para que o pensamento crie imagens ficcionais insólitas, como a do amante que encerra sua amada (ou vice-versa) no armário, o diálogo entre móveis, a escultura que fala.
Luis Camnitzer também foi feliz. Localizada no subsolo do espaço Exchange Flags, a instalação "The Waiting Room" remete aos porões da ditadura no Uruguai nos anos 70 e 80. São objetos dispersos aleatoriamente pelo chão, representações da liberdade de escolha do artista e do sonho de liberdade do preso político. Instalada no cubo branco de um museu ou galeria, a obra perderia sua força.
Gritante também foi a força e o estranhamento gerados pela obra de Nicola Costantino, que apresentou suas roupas de silicone com estampas que reproduzem partes do corpo humano, como mamilo, umbigos e ânus. Suas obras foram apresentadas em duas vitrines da loja de departamentos Harry's, a maior da cidade. Na 24ª Bienal de São Paulo, o mesmo trabalho era apresentado como peça de museu, enclausurado em uma caixa de acrílico.
Nem é preciso dizer que o interesse despertado no público de Liverpool é muito maior.
Os três artistas estão na mostra "Trace", a principal do evento, para a qual o curador Bond selecionou 61 artistas de 24 países.

Brasileiros
A mesma mostra traz trabalhos de cinco brasileiros: Ernesto Neto, Adriana Varejão, Vik Muniz, Rivane Neuenschwander e Miguel Rio Branco.
Neto ocupou toda uma sala no hall da Tate Gallery local com a escultura "Densidades e Buracos de Minhoca", realizada em tecido de lycra pontuado por dezenas de bolsas cheias de açafrão, pimenta preta, curry e cravo em pó, que envolvem o espectador em vários sentidos. Trata-se de uma evolução no trabalho de Neto, que ganha força a partir das formas e composições cromáticas mais elegantes e elaboradas.
Vik Muniz foi outro que teve bastante destaque, principalmente institucional, já que, apesar de ter apresentado trabalhos já vistos em várias ocasiões anteriores, como as fotografias de crianças realizadas com açúcar ou com restos de Carnaval, as obras do artista ilustraram a capa de dois dos encartes informativos da mostra.
Embora seja sua primeira edição, a Bienal de Liverpool já conta com uma certa aura. Parece ter havido um esforço coletivo em mostrar o melhor da produção de cada artista.
Adriana Varejão apresentou trabalhos que demonstram evolução no domínio técnico em sua pintura. São três grandes telas com motivos da azulejaria portuguesa e espanhola colonial, sob os quais se revelam entranhas absolutamente verossímeis, como se a artista quisesse revelar um passado sangrento e violento. Esse "detalhe" lembra as "cracas" de Nuno Ramos, que parecem ter voltado à vida na pintura de Varejão.

Surpresas
Liverpool, porém, não ficou no "déjà vu", reservando boas surpresas, como as fotografias de Maruch Sántiz Gómez, uma jovem indígena (nasceu em 1975) da região de Chiapas, que só começou a fotografar em 1993. Maruch reinterpreta as tradições locais, transformando-as e enriquecendo-as com poesia e dados pessoais. São fotografias em preto-e-branco de objetos, animais e cenas do cotidiano que Maruch acompanha de textos sobre crenças e costumes populares.
Na sua frente, estão as pinturas bordadas do também mexicano Carlos Arias, que trabalha com questões como a repetitividade do trabalho manual em contraposição ao processo de produção da obra de arte.
Outro nome que começa a despertar atenção e que estava em Liverpool é o austríaco Erwin Wurm, que apresentou suas "One Minute Sculpture" (vídeos, desenhos ilustrativos e objetos reminescentes de performances meteóricas), se bem que basta um olhar mais atento para se perceber suas remissões a Yves Klein e ao trabalho dos novo realistas franceses, que propunham uma nova relação da arte com o cotidiano e uma nova representação -mais direta e imediata- dele pela arte.

Força jovem britânica
Os britânicos mostraram que a arte produzida na ilha não parou na mostra "Sensation", atualmente em cartaz no Museu do Brooklin, em Nova York. Dois segmentos da Bienal de Liverpool dedicados à arte britânica mostram que ela tem bala na agulha.
"Newcontemporaries 99" é o resultado de uma pesquisa de campo entre jovens artistas recém-saídos ou ainda cursando escolas de arte no país.
Entre os destaques da mostra estão o vídeo "Going Down", em que Julie Henry posicionou frente a frente dois grandes monitores com cenas das reações de torcidas de futebol, e as "adobe dolls" (bonecas de adobe) de Stefanie Marshall, realizadas com trapos, cabelos, cascas de banana e terra.
A tradição da pintura foi bem representada na mostra "John Moore", que leva o nome do mais prestigioso prêmio local destinado exclusivamente a essa técnica.
Este ano, o prêmio maior (25 mil libras) foi para uma paisagem de Michael Raedecker, em que o autor concilia técnicas como pintura, colagem e bordado.

Casais
Um dos eventos paralelos da Bienal de Liverpool foi a mostra "Art Lovers", curada por Márcia Fortes, colaboradora da Folha.
Fortes reuniu casais de artistas e pediu para que criassem obras em comum, tarefa um tanto quanto complicada já que dificilmente a produção artística se abre a esse tipo de romantismo.
Entre os artistas escolhidos estavam os brasileiros Jac Leirner e José Resende, Maurício Ruiz e Aimberê César, Daniel Senise e Courtney Smith, e Ricardo de Oliveira e a sueca Fia Backstrom.
Um dos bons resultados da mostra é o vídeo "Always New, Always Familiar", de Janine Antoni e Paul Ramirez-Jonas.
O vídeo reúne em uma mesma tela dois tipos de imagens: o movimento da água do mar causado pelo deslocamento de um barco a motor (gravada por Ramirez-Jonas) e a água do mar desfocada vista a partir do barco (feita por Janine Antoni). O vídeo deverá ser exibido no Brasil em dezembro. A Bienal de Liverpool prossegue até o dia 7 de novembro.


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