São Paulo, sexta-feira, 04 de outubro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O amor em alta rotatividade

Marcelo recebe da chefia de reportagem a missão de cobrir a chegada de Anita, atriz de sucesso que vem a Roma fazer um filme. Na confusão do aeroporto, ele consegue impressionar a imensa loura que o cinema tornou famosa. No fim da entrevista, os dois estão sozinhos e dispostos a ir até o fim do poço e beber o último trago daquele encontro e daquela noite.
Começa então o drama do jornalista: aonde levar aquele mulherão que caiu em suas mãos? Ele sabe que não terá uma segunda chance. No amor, como no futebol, quem perde um pênalti acaba perdendo a guerra. Ele tinha de mandar a bola para o fundo das redes. Mas onde? Telefona para os amigos que têm apartamentos. Eles estão fora da cidade ou estão cobrando os seus próprios pênaltis. Força a memória para lembrar endereços antigos. Não dá pé. Vai desanimar quando olha a enorme loura que está a seu lado, esperando pelo apito do juiz. O jornalista vence seus últimos escrúpulos e telefona para uma amiga que mora sozinha. Ela compreenderá a emergência e irá ao cinema. Mas a amiga está recebendo convidados, não pode enxotar o pessoal. Resultado: os dois terminam vagando pela cidade deserta. E, quando a loura vê uma enorme fonte, entra dentro da água, com vestido e tudo, para acalmar os nervos arrebentados pelo calor da cidade. Essa comprida história aconteceu em ""A Doce Vida", de Federico Fellini. O jornalista era Marcello Mastroianni, e a atriz, Anita Ekberg. Com trilha sonora de Nino Rota, o famoso banho da Fontana di Trevi marcou o cinema dos anos 60. E só foi possível porque em Roma não havia -como não há- os hotéis que a linguagem técnica e comportada dos jornais e das autoridades chama de hotéis de "alta rotatividade".
Antigamente, esses hotéis tinham outros nomes, mas não importa. Assim como o Corcovado, o Pão de Açúcar e os oitis do bulevar 28 de Setembro são especialidades da casa, ou seja, do Rio, que continuará carioca apesar da fusão e da confusão -que, aliás, é outra de suas especialidades.
Rezam as crônicas que tudo começou com o hotel Leblon, cuja carcaça sofreu várias diagramações, mas que resiste até hoje, transformado em pensão de mineiros ou entidade parecida. Naquele tempo, o Leblon era tão inacessível quanto o Congo Belga ou o Camboja. Não se ia ao Leblon: partia-se para o Leblon. E foi no velho hotel que os casais mais audaciosos da época criaram o salutar hábito de passear e amar. Essas práticas não contavam com as bênçãos da sociedade ou da polícia. Volta e meia, o passeio e o amor terminavam no vexame ou no distrito. Para a felicidade do povo e o bem-estar da nação, felizmente o progresso é fatal. Do Leblon, os casais foram explorando palmo a palmo as encostas do Vidigal. O engenheiro Conrado Niemeyer teve a abençoada idéia de abrir uma estrada que tomou seu nome. Foi uma espécie de Belém-Brasília do pecado, uma Transamazônica do amor. A função faz o órgão e os hotéis começaram a ser feitos. Eram espeluncas simpáticas, assépticas, desoladas, mas que cumpriam perfeitamente com as suas finalidades. Aliás, o amor sempre se deu bem com a esqualidez (a frase é de um filme de Bergman), e uma geração de cariocas motorizados conseguiu romper com os hábitos da nossa belle époque sexual que estimulava a obrigatoriedade de uma garçonnière. Hoje, somente os diplomatas aposentados e os homens do Ancien Régime cultivam o hábito do apartamento com biombos ornados de crisântemos dourados -cantados por Orestes Barbosa no samba famoso.
Esses hotéis pioneiros tinham, ainda por cima, a vantagem de serem rigorosamente clandestinos. Por isso mesmo, funcionavam com a honestidade e a precisão do jogo de bicho. Volta e meia, havia um escândalo -e os jornais publicavam a relação dos hotéis suspeitos que a polícia havia fechado. Acontece que esses hotéis podiam ser tudo, menos suspeitos. Todo mundo sabia o que eram e para que serviam.
A penetração dos bandeirantes foi tão heróica e persistente quanto a de Fernão Dias: os hotéis se espraiaram no largo que tomou o nome do santo onomástico de Niemeyer (São Conrado) e subiu penosamente a pedra da Gávea, pelo flanco mais suave, junto ao mar. E as bandeiras chegaram ao Joá. Descer foi mais fácil: para baixo, todo santo e todo espanhol ajudam, e os hotéis invadiram a Barra.
Surgiram então dois eventos importantes: a pílula anticoncepcional e a indústria automobilística nacional. Deus fez -ou ajudou a fazer- as duas, mas foi seguramente o diabo que as juntou. A hotelaria daquelas bandas virou uma instituição tão forte que surgiu uma figura famosa na crônica policial da cidade: o Lima dos Hotéis, personagem mais ou menos mítico, composto de uma porção de gente que nem sequer se chamava Lima nem tinha nada a ver com os hotéis.
O fato é que volta e meia encanavam alguém sob a suspeita de ser gerente ou preposto do tal Lima dos Hotéis, que se tornou um ""capo dei capi" da poderosa e invisível máfia dos albergues onde o carioca pecava contra a castidade e cobiçava a mulher alheia. Isso contrariava não só os mandamentos da Santa Lei de Deus mas as posturas municipais, mais tarde estaduais. A lei varia, mas é lei.


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