São Paulo, sexta-feira, 04 de outubro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIA

"A Agenda" usa embuste para discutir ligação entre emprego e sucesso nas relações sociais

Profissão: farsante

FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Qualquer tradução que se fizesse do título do terceiro longa de Laurent Cantet não alcançaria o significado pleno da expressão francesa. Numa primeira leitura, "L'Emploi du Temps" quer dizer, literalmente, "o emprego do tempo", compreendidas aqui as duas acepções: de uso e de trabalho. Mas também se denomina "emploi du temps" um cronograma, mesmo uma lista de obrigações rabiscada num pedaço de papel.
No Brasil, contemplando esse último aspecto, o filme que estréia hoje em São Paulo (e está na programação do Festival do Rio BR) foi batizado de "A Agenda". Mas não é preciso tradução para entender a angústia de alguém que, como o protagonista Vincent (Aurélien Recoing), usa o tempo como meio de vida.
"A sociedade francesa atual parece querer se olhar, levar em conta problemas sociais, políticos e econômicos de modo mais organizado, mas não formal; o cinema faz parte disso", disse Cantet, 41, em entrevista à Folha.
É no bojo dessa atitude que o diretor insere sua reflexão sobre o mundo do trabalho, iniciada em "Resources Humaines" (1999) e retomada agora, no qual aborda a relação entre carreira e reconhecimento social.
"A Agenda", que valeu ao diretor o Leão do Ano do Festival de Veneza 2001, conta a história de um homem que entra em crise com o emprego a ponto de ter de deixá-lo e, sem coragem para encarar o julgamento da família, constrói uma falsa situação profissional, um trabalho internacional que o obriga a viajar constantemente. "O filme fala da dificuldade de encontrar um lugar no mundo quando não somos definidos pelo trabalho", diz Cantet.
No caso de Vincent, a falta de lugar é até mesmo literal: seu novo "emprego" faz de sua vida uma viagem sem ponto de chegada. Passa os dias no carro, ligando para a mulher de um celular para matar as saudades (verdadeiras) que ele mesmo criou e dormindo em postos de gasolina e estacionamentos.
O mote do filme foi dado por um caso real acontecido na França. Tendo abandonado a faculdade de medicina no segundo ano, Jean-Claude Romand inventou um emprego na Organização Mundial de Saúde. Afundou tanto na própria mentira que, desesperado ao ser descoberto, matou toda a família.
"No começo, a idéia era contar a história de um homem que queria achar outra maneira de viver. E, porque todo mundo trabalha, ele tem de mentir. Isso nos levou ao caso Romand", explica Cantet.
Mas, para o diretor, o ponto-chave e o aspecto mais provocador de "A Agenda" é colocar Vincent não como uma vítima do desemprego, mas como alguém que fez uma opção por isso. "Isso é, talvez, o mais difícil de aceitar: que a alienação que o trabalho nos causa não é necessariamente algo obrigatório. Pode ser uma problemática luxuosa. E ao mesmo tempo, por que não? Por que não aceitar que haja outras funções sociais para o indivíduo, além do trabalho?"


A AGENDA.
Direção: Laurent Cantet.
Com: Aurélien Recoing e Karin Viard.
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco e na Sala UOL e, a partir de domingo, no Festival do Rio BR 2002.



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