São Paulo, sexta-feira, 04 de outubro de 2002

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CINEMA

Um dos menos reconhecidos autores da nouvelle vague, o cineasta francês ganha mostra com 18 de seus filmes

SP recebe a modernidade de Eric Rohmer

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Com Eric Rohmer, não existe amor à primeira vista. Seus filmes não têm o impacto de um Godard, a doçura de Truffaut, a ironia ácida de Claude Chabrol, a beleza dos enquadramentos de Antonioni. De início, eles parecem nem mesmo fazer parte da experiência moderna.
Talvez por isso Rohmer foi o último rebento da nouvelle vague a ter seu talento reconhecido. Talvez por isso poucos de seus filmes chegaram ao Brasil, o que faz desta retrospectiva do Cinesesc um dos acontecimentos do ano.
Até hoje, aliás, não falta quem veja em Rohmer um realizador de talento limitado e excessivamente literário: um mero ilustrador de diálogos. É preciso observá-lo com calma e até mesmo alguma paciência para discernir ali, através das aparências, um dos mais radicais autores do cinema moderno. Vale insistir: através das aparências, não atrás delas (pois em Rohmer nenhuma segunda intenção se insinua entre a imagem e o espectador).
Quando o espectador se dá conta disso, começa a notar até que ponto essas histórias são cinematográficas e só fazem sentido quando filmadas. Pois, se seus personagens falam aos borbotões, seus discursos são quase sempre dotados de uma certeza que o correr das imagens virá a desmentir.
Nascido em 1920, Rohmer faz parte de uma geração que pôs em questão tradições como a narrativa linear do cinema clássico e enfatizou a importância da linguagem em detrimento da apreensão da realidade. Nesse sentido, ele caminhou na contracorrente do moderno, o que não ajuda em nada a penetração de seus filmes, embora tenha sempre sustentado a modernidade de seu trabalho.
Confrontado às sofisticadas análises de linguagem de Pasolini, por exemplo, arguia que o cinema não diz, nem significa, "o cinema mostra". Indagado sobre os jogos narrativos de um Alain Resnais, dizia que eles "abrem portas, mas essas portas não dão em parte alguma". Quando, por fim, alguém sustentava que a essência do cinema moderno é ser poético, respondia, apenas, que seu cinema é prosaico, sim, mas moderno.
Onde estaria então sua modernidade? Rohmer é o mais radical discípulo da teoria realista de André Bazin (1918-58). Para Bazin, a originalidade do cinema consiste em sua capacidade de captar o mundo objetivamente, sem a interferência da mão do artista. Até então, o habitual era considerar o cinema uma arte apesar disso. Ou seja, o que fazia dele uma arte era a capacidade de, graças à técnica, distanciar-se do mundo tal como se apresenta a nossos olhos.
Nos filmes de Rohmer, essa idéia se traduz numa simplicidade que, ao olhar desprevenido, beira a ingenuidade. Só a persistência dessa idéia ao longo da obra nos leva a compreender seu projeto: associar a objetividade do cinema à expressão de uma subjetividade -que, esta sim, caracterizaria o cinema moderno.
Para facilitar, a maior parte da obra é agrupada em séries. "Contos Morais" (63-72) é sobre a escolha entre trair ou não trair a mulher; "Comédias e Provérbios" (80-87) enfatiza as relações interpessoais; "Contos das Quatro Estações" (90-98) leva a ambiguidade das relações entre os personagens às últimas consequências.
O que já se disse de Howard Hawks também vale para Rohmer: é impossível amar seus filmes sem amar o cinema; é impossível amar o cinema sem amar seus filmes. Nos dois casos, o amor vem com o tempo.


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