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RODAPÉ
A crisálida poética de Régis Bonvicino
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Silêncio é forma", escreve
Régis Bonvicino em um
dos poemas de "Remorso do Cosmos (de Ter Vindo ao Sol)". Poderíamos entretanto inverter a
equação e dizer que, nesse novo
livro de Bonvicino, forma é silêncio. E também "risco de luz",
"tempo lavanda", "canção da boca fechada", "sistro, sol sonante,/
cordas mudas de um saltério".
O que tais expressões e versos,
colhidos de poemas do livro, têm
em comum? Uma idéia de delicadeza, de precariedade -expressa
ainda na imagem da "crisálida",
forma provisória entre a lagarta e
a borboleta. Pois a própria poesia
de Bonvicino parece estar aqui
em um momento de transição. É
como se a dicção urbana dominante em livros anteriores, aquela
sintaxe "fraturada em "staccato'"
(como observou Josely Vianna
Baptista), tivesse cedido espaço
ao retraimento.
Em "Remorso do Cosmos", o
poeta parece trovar em surdina:
"Tentava atrair uma imagem/ como se tocasse um piano mudo/
demais desgaste sem nexo/ contínuo intento refugo", escreve ele
em "Etc." -longo poema dividido em várias seções que começam
sempre por uma tentativa de captar a paleta deflagrada pelo passeio em museus mentais ("Tentava apanhar a flor/ meia-parede/
braço entre as grades"; "Tentava
seguir, passos/ vozes, no mármore"; "Tentava entender a figura/
do cavalo amarelo/ no Museu de
Arte.../").
Bem entendido, não se trata de
uma ruptura com seus livros anteriores, mas de uma mudança de
tom (ou de tonalidade, dado o
cromatismo que o percorre). Para
o leitor que ainda não conhece a
obra do escritor, portanto, a leitura desse livro vale pelo todo.
E, diga-se logo, a obra de Régis
Bonvicino deve seu vigor ao modo como, após assimilar a economia formal do concretismo, foi
pouco a pouco, em títulos como
"Ossos de Borboleta" ou "Céu-Eclipse", derivando para uma
poesia imagética, sem detrimento
da estrutura. Ou seja, Bonvicino
transferiu a visualidade "pura" do
signo concretista para a representação do mundo "externo", captando a descontinuidade da experiência por meio de uma linguagem em que visões e sensações se
assemelham a cacos, a ícones de
realidade.
No caso de "Remorso do Cosmos", exemplos desses instantâneos podem ser lidos em poemas
como "Abstract" e "Abstract (2)",
em que cenas de crimes e de exclusão social surgem como fotogramas de um thriller pós-moderno, rematado pela ironia do
verso final: "Em Manhattan, só o
rato é democrático".
Ou ainda na série dos poemas
"Sem Título", compostos por um
único verso prolongado, em que
aparecem referências à tecnologia
bélica e a situações de tensão política (a morte de um militante antiglobalização em Gênova; a guerra do narcotráfico na Colômbia).
Para quem acompanha a produção de Bonvicino, porém, parece que há uma inversão de perspectiva. Antes, ele parecia observar as coisas para detectar núcleos
de significação, que se metamorfoseavam em uma poesia sincopada, cujas frases células eram pequenas ilhas semânticas, colocadas lado a lado como os objetos
do mundo.
Agora, predominam os objetos
como estruturas fugazes, cuja
perfeição é vulnerável. Daí o tema
recorrente das flores, encarnação
de uma beleza complexa, porém
frágil, como no "Quarto Poema"
(em que aparece o título do livro):
"Flores exalam medo,/ cólera de
cor,/ magnólias exalam silêncio/
tulipa intimidada,/ o idioma dos
medos/ folhas caducas/ das calêndulas sem janeiro/ remorso do
cosmos/ de ter vindo ao sol".
É difícil saber o motivo da mudança. Talvez possamos atribuir
essa retração íntima a uma dor
pessoal, expressa de modo tocante em "Música": "Dias de agonia e
pus/ (um silêncio ininterrupto)/
na cama, entre os fios,/ meu pai
morreu muito". Talvez seja ressentimento em relação às disputas do meio literário, manifesto
em versos como "e me tornei (eu)
mesmo/ vítima do menosprezo?"
ou "I have been overkilled by my
peers" (Fui destroçado por meus
pares).
Tanto faz o motivo do desencanto. A poesia de Régis Bonvicino encerra um percurso de rara
coerência -e deve ser lida com
muito respeito.
Remorso do Cosmos (de Ter Vindo ao Sol)
Autor: Régis Bonvicino
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 26 (100 págs.)
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