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São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2003

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RODAPÉ

A crisálida poética de Régis Bonvicino

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Silêncio é forma", escreve Régis Bonvicino em um dos poemas de "Remorso do Cosmos (de Ter Vindo ao Sol)". Poderíamos entretanto inverter a equação e dizer que, nesse novo livro de Bonvicino, forma é silêncio. E também "risco de luz", "tempo lavanda", "canção da boca fechada", "sistro, sol sonante,/ cordas mudas de um saltério".
O que tais expressões e versos, colhidos de poemas do livro, têm em comum? Uma idéia de delicadeza, de precariedade -expressa ainda na imagem da "crisálida", forma provisória entre a lagarta e a borboleta. Pois a própria poesia de Bonvicino parece estar aqui em um momento de transição. É como se a dicção urbana dominante em livros anteriores, aquela sintaxe "fraturada em "staccato'" (como observou Josely Vianna Baptista), tivesse cedido espaço ao retraimento.
Em "Remorso do Cosmos", o poeta parece trovar em surdina: "Tentava atrair uma imagem/ como se tocasse um piano mudo/ demais desgaste sem nexo/ contínuo intento refugo", escreve ele em "Etc." -longo poema dividido em várias seções que começam sempre por uma tentativa de captar a paleta deflagrada pelo passeio em museus mentais ("Tentava apanhar a flor/ meia-parede/ braço entre as grades"; "Tentava seguir, passos/ vozes, no mármore"; "Tentava entender a figura/ do cavalo amarelo/ no Museu de Arte.../").
Bem entendido, não se trata de uma ruptura com seus livros anteriores, mas de uma mudança de tom (ou de tonalidade, dado o cromatismo que o percorre). Para o leitor que ainda não conhece a obra do escritor, portanto, a leitura desse livro vale pelo todo.
E, diga-se logo, a obra de Régis Bonvicino deve seu vigor ao modo como, após assimilar a economia formal do concretismo, foi pouco a pouco, em títulos como "Ossos de Borboleta" ou "Céu-Eclipse", derivando para uma poesia imagética, sem detrimento da estrutura. Ou seja, Bonvicino transferiu a visualidade "pura" do signo concretista para a representação do mundo "externo", captando a descontinuidade da experiência por meio de uma linguagem em que visões e sensações se assemelham a cacos, a ícones de realidade.
No caso de "Remorso do Cosmos", exemplos desses instantâneos podem ser lidos em poemas como "Abstract" e "Abstract (2)", em que cenas de crimes e de exclusão social surgem como fotogramas de um thriller pós-moderno, rematado pela ironia do verso final: "Em Manhattan, só o rato é democrático".
Ou ainda na série dos poemas "Sem Título", compostos por um único verso prolongado, em que aparecem referências à tecnologia bélica e a situações de tensão política (a morte de um militante antiglobalização em Gênova; a guerra do narcotráfico na Colômbia).
Para quem acompanha a produção de Bonvicino, porém, parece que há uma inversão de perspectiva. Antes, ele parecia observar as coisas para detectar núcleos de significação, que se metamorfoseavam em uma poesia sincopada, cujas frases células eram pequenas ilhas semânticas, colocadas lado a lado como os objetos do mundo.
Agora, predominam os objetos como estruturas fugazes, cuja perfeição é vulnerável. Daí o tema recorrente das flores, encarnação de uma beleza complexa, porém frágil, como no "Quarto Poema" (em que aparece o título do livro): "Flores exalam medo,/ cólera de cor,/ magnólias exalam silêncio/ tulipa intimidada,/ o idioma dos medos/ folhas caducas/ das calêndulas sem janeiro/ remorso do cosmos/ de ter vindo ao sol".
É difícil saber o motivo da mudança. Talvez possamos atribuir essa retração íntima a uma dor pessoal, expressa de modo tocante em "Música": "Dias de agonia e pus/ (um silêncio ininterrupto)/ na cama, entre os fios,/ meu pai morreu muito". Talvez seja ressentimento em relação às disputas do meio literário, manifesto em versos como "e me tornei (eu) mesmo/ vítima do menosprezo?" ou "I have been overkilled by my peers" (Fui destroçado por meus pares).
Tanto faz o motivo do desencanto. A poesia de Régis Bonvicino encerra um percurso de rara coerência -e deve ser lida com muito respeito.


Remorso do Cosmos (de Ter Vindo ao Sol)    
Autor: Régis Bonvicino
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 26 (100 págs.)



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