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biblioteca FOLHA
Peça pregada pela vida nas férias de um cinquentão é o tema de "Morte em Veneza", a ser lançado amanhã
Mann testa disciplina diante da surpresa
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O pensador alemão Nietzsche
(1844-1900) escreveu certa vez
que os homens, por razões não
muito nobres, como o medo e a
insegurança, construíram um
mundo supostamente lógico e
cheio de regras para que a existência se tornasse tolerável. Ocorre,
porém, advertia o mesmo Nietzsche, que a vida parece zombar de
tais mecanismos de proteção e,
com uma constância talvez superior à que gostaríamos, coloca
abaixo todas as certezas que dão
sentido e estruturam a nossa temporada no mundo.
O próximo volume a ser lançado amanhã pela Biblioteca Folha,
"Morte em Veneza", escrito pelo
grande romancista alemão Thomas Mann (1875-1955) em 1912,
conta-nos uma história que, em
linhas muito gerais, ilustra com
maestria as observações de
Nietzsche. Mann coloca-nos
diante de Gustav Aschenbach, um
intelectual solitário e bastante
bem-sucedido que, um belo dia,
inspirado por um encontro inusitado, resolve sair de sua rotina de
décadas -passar os verões em
sua casa nas montanhas próximas
à Munique- e empreender uma
viagem de férias um pouco mais
ousada.
Aschenbach, é bom que se saiba, não era homem de desregramentos ou exageros. Desde de
muito cedo, enfrentara sérios
problemas de saúde e padecera de
uma consequente falta de energia
vital. Tinha sido, pois, à custa de
muita disciplina, de muito controle de si, que havia domado o
seu caráter, compensado a sua debilidade corporal e triunfado na
competitiva carreira escolhida.
Nada, ou quase nada, portanto,
parecia poder levar o metódico
cinquentão a abdicar do meticuloso autocontrole que lhe garantira até então não somente a sobrevivência como o sucesso.
É bom que se saiba, igualmente,
que o "herói" de "Morte em Veneza" era uma "natureza artística" e, segundo conta-nos o narrador, "a quase todas as naturezas
artísticas é inata uma tendência
exuberante e traidora: reconhecer
a beleza criadora de injustiça e
manifestar por ela aristocrática
preferência, interesse e homenagem". Aschenbach, em poucas
palavras, acreditava, no seu íntimo, que somente por meio do belo a verdade se revela no mundo
dos homens.
Pois bem! É esse homem cheio
de regras, cheio de "causas e efeitos", "formas e conteúdos", para
usarmos uma expressão do referido Nietzsche, que resolve explorar as emoções de uma viagem. A
intensidade do primeiro impulso
é tanta que Aschenbach cogita até
mesmo seguir para um destino
exótico, para uma misteriosa "região tropical" qualquer. Ânimos
aquietados, todavia, conclui que o
melhor seria uma breve perambulação dentro do bem conhecido Velho Mundo, perambulação
com destino incerto, a princípio,
mas que acabará em Veneza.
Em uma Veneza quente, por vezes opressiva e ameaçada por
uma epidemia de cólera, o disciplinado Aschenbach será vítima
de uma daquelas peças que a vida
costuma pregar nos que acreditam poder controlá-la na sua totalidade. O bem-sucedido intelectual depara, em meio aos monótonos frequentadores de seu sofisticado hotel, com um adolescente
polonês, de nome Tadzio, que,
aos seus olhos, é a própria encarnação da beleza. Os efeitos dessa
quase "visão divina" na vida do
pacato homem de meia-idade serão gigantescos. Mas isso cabe ao
leitor descobrir percorrendo as
páginas do envolvente "Morte em
Veneza".
Jean Marcel Carvalho França é doutor
em literatura comparada e autor de "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José
Olympio), entre outros
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