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São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2003

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Em busca da forma PERFEITA

Reprodução
Quadro do pintor inglês John Atkinson Grimshaw (1836-93) que retrata a cidade de Londres no século 19, cenário de parte de "A Bem-Amada", de Thomas Hardy



"A Bem-Amada", do inglês Thomas Hardy, narra o amor de um escultor por um ideal feminino que perpassa três gerações de uma família


Leia a seguir trecho do romance "A Bem-Amada", que é lançado neste mês pela editora Códex.
 

Chegando à sala de jantar, ele conversou com sua anfitriã. Não obstante entretivesse 23 convidados em sua mesa aquela noite, ela sabia não apenas o que cada um deles estava dizendo ou fazendo durante o repasto, como também o que estava pensando. Assim, como uma velha amiga, ela disse calmamente: -O que o está incomodando? Algo está, tenho certeza. Eu estive perscrutando o seu rosto e percebi.
Nada poderia expressar pior o sentido que a notícia recente tinha para ele do que uma verbalização dos fatos. Ele contou sobre a abertura da carta e a descoberta da morte de uma velha conhecida.
-A única mulher que eu nunca valorizei corretamente, quase devo dizer!
E acrescentou:
-E, no entanto, a única que eu sempre lamentarei!
Considerando ou não essas palavras uma explicação satisfatória, a experiente dama aceitou-as como tal. Ela era a única mulher em seu círculo a quem nenhuma das suas ações erráticas poderia surpreender, e ele sempre depositou nela, em segurança, os mais vagos confins de suas confidências.
Ele não mais se aproximou da sra. Pine-Avon; não conseguia. E, ao deixar a casa, caminhou abstraído pelas ruas até que se encontrou diante da porta de sua residência. Em seu quarto, sentou-se e, colocando as mãos atrás da cabeça, abandonou-se a seus pensamentos novamente.
Em um dos lados do quarto havia uma escrivaninha e, de dentro de uma gaveta inferior, ele tirou uma pequena caixa firmemente fechada. Forçou a tampa com o atiçador. A caixa continha uma variedade de quinquilharias que, durante anos, Pierston jogara ali de tempos em tempos para uma futura arrumação -uma intenção que ele nunca levara a cabo.
Da melancólica massa de papéis, fotografias desbotadas, selos, diários, flores murchas e coisas do gênero, Jocelyn retirou um pequeno retrato, impresso em vidro nos primitivos tempos da fotografia e emoldurado com ouropel da maneira mais comum.
Era Avice Caro, tal como se afigurava durante um ou dois meses de verão que ele passara com ela na ilha 20 anos antes; tinha os jovens lábios franzidos, as mãos docilmente cruzadas. O efeito do vidro era o de emprestar ao retrato muito da suavidade característica do original. Ele se lembrava de quando havia sido tirado -durante uma tarde que passaram juntos num balneário vizinho, quando ele sugeriu que ela posasse para um artista de rua na praia, já que nada mais havia para se fazer. Uma longa contemplação da semelhança completou nos seus sentimentos o que a carta começara. Ele amava a mulher morta e inacessível como nunca a amara em vida. Ele pensara nela apenas esporadicamente naqueles 20 anos desde que sua separação tivera lugar, e apenas como alguém com quem poderia ter-se casado. Agora, os tempos de jovial amizade com ela, nos quais ele conhecera cada traço de sua natureza inocente, inflamavam-se numa ligação apaixonada e ansiosa, tornada amarga por um remorso além das palavras.
Aquele beijo, que ofendera sua dignidade e que ela lhe dera tão infantilmente antes de ver despertada a consciência de que se tornara uma mulher... o que ele não daria para ter um quarto desse beijo agora!
Pierston estava quase irritado consigo mesmo por causa de seus sentimentos esta noite, tão desarrazoada e imotivadamente fortes eram em relação à jovem companheira perdida.
-Como sou insensato! -disse ele, quando se deitava na cama solitária.
Ela havia sido a esposa de outro homem quase todo o período de tempo desde que ele se separara dela. E agora ela era um cadáver. Mas o absurdo disso não diminuía seu sofrimento, e a consciência da pureza intrínseca, quase radiante, de sua recém-aflorada afeição por um espírito fluido o impedia de refreá-lo. A carne estava de todo ausente; era amor rarefeito e refinado a seu mais alto atar. Nunca sentira nada como aquilo antes.
Na tarde seguinte, foi ao clube; não ao grande clube, onde os homens raramente conversavam uns com os outros, e sim ao mais íntimo, onde eles contavam histórias que duravam uma tarde e não se envergonhavam de confessar entre si fraquezas e extravagâncias pessoais, sabendo que tais segredos não sairiam dali. Mas não conseguiu contar nada disso. A história era tão volátil e intangível que concretizá-la em palavras seria difícil como aprisionar um perfume numa gaiola. (...)
Depois do jantar, seu velho amigo Somers veio fumar com ele, e, após terem conversado um pouco, Somers aludiu casualmente a um lugar onde se encontrariam no dia seguinte.
-Não estarei lá -disse Pierston.
-Mas você prometeu!
-Sim. Mas estarei na ilha... contemplando o túmulo de uma mulher morta.
À medida que falava, seus olhos moveram-se, fixando-se em uma mesa próxima. Somers seguiu o olhar que ia na direção de uma fotografia sobre um aparador.
-É ela? -perguntou.
-Sim.
-Um caso um tanto antigo, não?
Pierston concordou.
-Ela foi a única namorada que eu desrespeitei, Alfred -disse ele. -Porque foi a única com quem deveria ter-me importado. É exatamente esse o tipo de tolo que sempre fui.
-Mas, se ela está morta e enterrada, você pode ver seu túmulo a qualquer hora para acalentar seu sentimento.
-Não sei se ela está enterrada.
-Mas amanhã... a noite da Academia! Entre todos os dias, por que amanhã?
-Não me importo com a Academia.
-Pierston, você é nosso único escultor inspirado. Você é nosso Praxíteles, ou melhor, nosso Lisipo. Você é praticamente o único homem nesta geração capaz de moldar e cinzelar formas vivas o suficiente para desviar o público fútil das pinturas populares, levando-o à habitualmente deserta sala de conferências. E quem viu suas últimas obras diz que não há nada igual a elas desde 1600, e desde a época em que os escultores da grande estirpe viveram e morreram, qualquer que tenha sido ela. Bom, então, pelo bem dos outros, você não deve fugir para aquela pedra esquecida por Deus no mar, justamente quando é necessário na cidade, só por causa de uma mulher que você viu pela última vez há centenas de anos.
-Não, foram só dezenove e três quartos -respondeu seu amigo, com distraída literalidade.


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