São Paulo, segunda-feira, 04 de outubro de 2004

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NELSON ASCHER

O Nobel de Literatura

Nesta semana será anunciado o prêmio Nobel de Literatura. O ganhador, além do reconhecimento geral, receberá um cheque polpudo, seus rivais, repetindo a palavra "injustiça", o detestarão bem mais, seus editores, satisfeitos por terem feito uma boa aposta, republicarão seus livros, destacando nas capas a honraria, e seu país, se for pequeno ou complexado, vai festejá-lo como herói nacional. Durante um ou dois dias ele (ou ela) ocupará um pequeno espaço nas primeiras páginas dos jornais, críticos opinarão sobre seus méritos ou limitações e leitores comprarão suas obras.
A estranheza desses dias decorre de quão atípicos eles são. Autores e livros têm pouco a ver com o noticiário. Seu lugar jornalístico se encontra num suplemento ou revista especializada. A literatura, ademais, é, em seus dois extremos, o da criação e o da fruição, um afazer privado, um vínculo que se estabelece entre um escritor solitário e um leitor igualmente solitário. Seu trânsito pela esfera pública não passa de um interlúdio efêmero. No entanto, concursos e prêmios, ampliando artificialmente tal esfera, conseguiram promover certas áreas da cultura como se fossem um acontecimento ou competição. Entre esses, o Nobel, dado pela primeira vez em 1901 a um poeta francês já esquecido, Sully Prudhomme, tornou-se o mais famoso.
Como e por que isso ocorreu tem um quê de misterioso. O fenômeno, se bem que seus antecedentes remontem à Grécia clássica, é tipicamente moderno. Qualidade literária não se mensura nem se compara facilmente: há apenas avaliações convincentes ou não, critérios que mudam com freqüência, opiniões informadas ou desinformadas. O olhar treinado reconhece prontamente a subliteratura mas, quando se cotejam obras complexas, o juízo superficial não basta.
Não que a crítica literária seja atividade arbitrária. Sempre houve praticantes capazes de perceber o que era marcante nesse poema ou naquele romance. Eles são, contudo, mais raros do que os grandes escritores. Quanto aos membros da Academia Sueca que outorga o Nobel, o crítico George Steiner formulou a indagação pertinente: por que deveríamos levar a sério as escolhas de uns escandinavos obscuros? Resposta: não há razão para isso. Mas eles têm o dinheiro e selecionam quem quiserem.
O prestígio de um prêmio pode advir da consistência de seus acertos. Não é o caso do Nobel. Dos 38 laureados pelos suecos antes da Segunda Guerra Mundial, talvez meia dúzia (Kipling, W.B. Yeats, Bernard Shaw, Thomas Mann, Pirandello, Eugene O'Neill) sobreviveu ao teste do tempo. Quem se lembra hoje, digamos, de Rudolf Cristoph Eucken, Jacinto Benavente, Grazia Deledda? O rol de autores que, na época, escaparam à atenção dos acadêmicos é impressionante: Tolstói, Tchékhov, Ibsen, Strindberg, Thomas Hardy, Apollinaire, Proust, Joyce, García Lorca etc. Contam-se nos dedos os escritores importantes que, como Elias Canetti, seriam, sem o prêmio, menos lidos ou conhecidos.
Parte da reputação do Nobel literário vem de sua associação com os prêmios outorgados às ciências. Que um poeta seja celebrado juntamente com físicos, químicos, biólogos e médicos sugere que há como se avaliar o trabalho de todos com objetividade semelhante. Se, no que diz respeito aos cientistas, os leigos não têm opção salvo a de acatarem as conclusões dos especialistas, quando se fala de cultura nada assegura de antemão que o ponto de vista de qualquer um de nós seja menos qualificado que o do júri de Estocolmo.
A imagem que a Suécia projetou no século passado, a de um país pequeno e afluente, democrático e neutro, também contribuiu para emprestar ao Nobel uma aura de imparcialidade, aura reforçada quando, após a guerra, a proporção de laureados escandinavos se reduziu substancialmente.
No fim das contas, a idéia que subjaz a uma distinção dessas nos remete ao clima intelectual europeu da virada do século 19/20, um período caracterizado pelo otimismo de uma civilização que se via como potencialmente universal e imune a crises profundas. Os valores culturais europeus constituíam, na mente de seus portadores, um apogeu histórico que, logo, a humanidade inteira compartilharia. Embora a ilusão sobrevivesse à realidade que a gerou, ela, contaminando-se do espírito que formou e deformou a ONU, adaptou-se às novas circunstâncias. O Nobel, deixando de ser um galardão literário, converteu-se em item de política cultural, com ênfase no substantivo. Daí que, nas décadas recentes, indivíduos, instituições e até nações tenham dedicado tempo, esforço e diplomacia à sua conquista.
Não obstante as considerações acima, há uma pergunta que persiste: quem vai ganhar desta vez?
Dois dos melhores poetas contemporâneos são o polonês Tadeusz Rozewicz e o alemão Hans Magnus Enzensberger. Tanto a Polônia quanto a Alemanha foram, todavia, premiadas há pouco. Faz tempo que ninguém das vizinhanças da Escandinávia leva o prêmio. O sueco Tomas Tranströmer e o finlandês Paavo Haavikko estão entre os candidatos prováveis. 2004 foi o ano em que dez países ingressaram na União Européia, e homenagear um deles não está fora de questão. Palpites: os eslovenos Kajetan Kovic e Tomaz Salamun, o lituano Tomas Venclova e os estonianos Jaan Kross e Jaan Kaplinski. Como a Turquia não será aceita tão cedo na Europa, um Nobel, por exemplo, para Yasar Kemal (que tem raízes curdas) serviria de consolo. Tampouco vale a pena descartar algum holandês (Harry Mulisch), russo (Aleksandr Kushner) ou árabe (Adonis, Darwish). Em breve saberemos.


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