São Paulo, segunda-feira, 04 de outubro de 2004

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ERUDITO

Apresentação do Les Arts Florissants em SP guarda as mínimas e máximas nuances de ópera de Charpentier

A vanguarda musical que vem do barroco

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Marc-Antoine Charpentier (1643-1704) é um dos grandes poetas barrocos da morte e em sua ópera "David et Jonathas" chega a um ponto supremo da expressão do que não tem expressão. Interpretada por Les Arts Florissants, na sexta-feira, a "tragédia bíblica" fez cair um véu de humanidade sobre o nanoponto miraculoso da Sala São Paulo, girando lentamente no cosmos, enquanto a uma quadra dali a desumanidade gira, mira e atira.
Se o contraste parece brutal, não é maior do que o que distingue o primeiro ato do quinto, por exemplo. Da exaltação vigorosa do início, nos tons de precisão e elegância característicos do regente William Christie, chegou-se depois às devastadoras sombras do coral que lamenta a morte de Jonathas. Centrado nas apojaturas da palavra "hélas" ("desgraça"), esse coral traduz um dueto amoroso do par de inimigos para o domínio definitivo do que não tem medida nem nunca terá, que biblicamente também não tem remédio nem nunca terá.
O contraste só se acentua com a fanfarra que vem logo em seguida -inaudível ao cabisbaixo David. Dizer que a encenação era espetacular parece exagero, quando tudo foi feito com tamanha economia pela cenógrafa Rita de Letteriis. Assim como há dez anos, quando os Florissants fizeram uma inesquecível "Descida de Orfeu aos Infernos", essa "encenação de concerto" tira o máximo de efeito do mínimo de artifício.
Cantores de casaco preto e camisa branca, mas cada um com seu traço pessoal. As linhas vermelhas no sapato de David servem de exemplo do tipo de nuance fatídica desse figurino aparentemente neutro. Só o que não era neutro eram as roupas seiscentistas do coro de meninos, que por isso mesmo ganhavam nuance irônica. Tudo, afinal, é nuance na arte de Charpentier; mas seu gênio, defendido há décadas por William Christie, assegura que nada é só nuance.
Eram tantos cantores, e tão bons, que fica difícil destacar algum. Mas o David de Cyril Auvity (tenor agudo) e a Pitonisa de Jeffrey Thompson (idem) dividem os louro. Cantado pela soprano Maud Gnidaz, o papel de Jonathas se beneficiou de ambigüidades andróginas: um papel masculino gay, cantado por uma soprano encenando um homem parece bom demais para ser mentira. A ópera barroca vive de verdades assim.
Tudo, afinal, é nuance na arte de Charpentier. Que ela tenha se tornado uma das formas da vanguarda musical do nosso tempo não contradiz esse espírito. É uma das fortunas que nos protegem contra o silêncio dos espaços infinitos, e contra o barulho ao redor.


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