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ERUDITO
Apresentação do Les Arts Florissants em SP guarda as mínimas e máximas nuances de ópera de Charpentier
A vanguarda musical que vem do barroco
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Marc-Antoine Charpentier (1643-1704) é um dos
grandes poetas barrocos da morte
e em sua ópera "David et Jonathas" chega a um ponto supremo
da expressão do que não tem expressão. Interpretada por Les Arts
Florissants, na sexta-feira, a "tragédia bíblica" fez cair um véu de
humanidade sobre o nanoponto
miraculoso da Sala São Paulo, girando lentamente no cosmos, enquanto a uma quadra dali a desumanidade gira, mira e atira.
Se o contraste parece brutal, não
é maior do que o que distingue o
primeiro ato do quinto, por
exemplo. Da exaltação vigorosa
do início, nos tons de precisão e
elegância característicos do regente William Christie, chegou-se
depois às devastadoras sombras
do coral que lamenta a morte de
Jonathas. Centrado nas apojaturas da palavra "hélas" ("desgraça"), esse coral traduz um dueto
amoroso do par de inimigos para
o domínio definitivo do que não
tem medida nem nunca terá, que
biblicamente também não tem remédio nem nunca terá.
O contraste só se acentua com a
fanfarra que vem logo em seguida
-inaudível ao cabisbaixo David.
Dizer que a encenação era espetacular parece exagero, quando tudo foi feito com tamanha economia pela cenógrafa Rita de Letteriis. Assim como há dez anos,
quando os Florissants fizeram
uma inesquecível "Descida de Orfeu aos Infernos", essa "encenação de concerto" tira o máximo
de efeito do mínimo de artifício.
Cantores de casaco preto e camisa branca, mas cada um com
seu traço pessoal. As linhas vermelhas no sapato de David servem de exemplo do tipo de nuance fatídica desse figurino aparentemente neutro. Só o que não era
neutro eram as roupas seiscentistas do coro de meninos, que por
isso mesmo ganhavam nuance
irônica. Tudo, afinal, é nuance na
arte de Charpentier; mas seu gênio, defendido há décadas por
William Christie, assegura que
nada é só nuance.
Eram tantos cantores, e tão
bons, que fica difícil destacar algum. Mas o David de Cyril Auvity
(tenor agudo) e a Pitonisa de Jeffrey Thompson (idem) dividem
os louro. Cantado pela soprano
Maud Gnidaz, o papel de Jonathas se beneficiou de ambigüidades andróginas: um papel masculino gay, cantado por uma soprano encenando um homem
parece bom demais para ser
mentira. A ópera barroca vive de
verdades assim.
Tudo, afinal, é nuance na arte
de Charpentier. Que ela tenha se
tornado uma das formas da vanguarda musical do nosso tempo
não contradiz esse espírito. É
uma das fortunas que nos protegem contra o silêncio dos espaços infinitos, e contra o barulho
ao redor.
Avaliação:
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