São Paulo, sábado, 4 de outubro de 1997.




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TEATRO CRÍTICA
Zé Celso questiona sua própria imagem em 'Ela'

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Talvez "Ela", de Jean Genet, em cartaz no Oficina, seja menos sobre a imagem de João Paulo 2º e mais sobre a imagem de José Celso Martinez Corrêa, personalidade do teatro. É a primeira montagem em que ele é verdadeiramente ator. É o protagonista.
Uma edição antiga da revista "Dionysos", do MEC, relata que o crítico Décio de Almeida Prado, ao ver a estréia do grupo Oficina nos anos 50, ainda em fase amadora, enalteceu o "expressivo futuro ator" Zé Celso.
Mas não seguiu por aí o talento de Zé Celso. Atravessou anos 60, 70, 80 com mínima experiência no palco, encerrado nas coxias -encenando e polemizando. Na estréia de anteontem, ocupou a boca de cena e estreou ele próprio como primeiro ator.
Foi divertido, cantou -e bem-, foi profundo. E falou baixo, por vezes nem foi ouvido, e titubeou muito nas falas. Desperdiçou frases de Jean Genet, mas também realçou outras, dando sentido e poesia, em comunhão do ator com o diretor e com o tradutor.
E a imagem famosa, o "carisma" dos cabelos brancos, da magreza, do visionário, acresceu em ares anciãos, com as mãos trêmulas, como, aliás, as do papa João Paulo 2º. Mas também ele, como indica o texto, quer acabar com ela, com tal imagem. Expõe ao vivo o quanto a imagem é restritiva, sobretudo o quanto há para além dela, no -agora- ator em cena.
"Ela" é uma comédia, é mais um espetáculo que se poderia definir como leve, até mesmo comercial, e Zé Celso seguiu o tom. Brincou com a platéia, fez cacos, pareceu divertir-se ele mesmo.
Diante da intromissão (no que parece marcar todas as estréias no Oficina) de uma mulher meio sem juízo, entrando pelo palco/pista e falando ao personagem do papa como se fosse o próprio, Zé Celso não deixou que fosse retirada do teatro. Outros atores já estavam para expulsá-la quando ele reagiu: "Não, o papa é para todos". E ela ficou, por ali.
É assim o "papa" Zé Celso, ou melhor, "Ela, Sua Santidade", na imagem pública que se mescla com outras, ao vivo. Mas "Ela", a peça, ainda enfrenta não poucos problemas. Estreou sem ritmo, com longas pausas desnecessárias e lentidão geral.
Ainda que não se possa igualar a peça àquela anterior do Oficina, "Pra Dar um Fim no Juízo de Deus", de Antonin Artaud (de proposta e resultado certamente mais profundos), é certo que falta um ritual mínimo, no pouco que é indicado aqui e ali por Jean Genet e desperdiçado na apresentação (não há rito sem ritmo).
Marcelo Drummond está bem mais audível, com uma voz afinal esmerada, também com domínio cômico pleno do público no seu Mestre de Cerimônias (ele que é um ator de presentação e não de representação). Mas Fransérgio Araújo não chega a encontrar seu Fotógrafo entre os extremos com que tenta construí-lo.
Salta do histérico para o patético para o contido sem achar-se em nenhum deles, como que alienado do personagem -e alienando consigo o espectador. E assim o Fotógrafo, que seria aquele que "revela" a verdade sob a imagem, o homem sob a máscara do papa, não se revela ele próprio.
Vadim Nikitin, que interpreta o Cardeal, não tem a pretensão, ao que parece, de ser um ator (russo, é mais conhecido no teatro como tradutor e diretor), mas pode-se dizer bem-sucedido nas maneiras insolentes, desavergonhadas que dá ao personagem que sucede o papa. Tem o sarcasmo brechtiano que é característico, peculiar, da interpretação do grupo Oficina desde tempos idos.
Uma comédia comercial, "Ela" tem uma integração cenográfica, de "arte", incomum no Oficina destes anos 90.
Gringo Cardia, um cenógrafo e figurinista mais conhecido em São Paulo pelas comédias de Mauro Rasi, pintou ou cobriu o teatro de Lina Bo Bardi de dourado. Deu um inesperado brilho de Broadway, comercial, à "oficina".
Estendeu longo tapete vermelho e deu aos cinco atores vestimentas de um luxo expressivo e "fake", para usar a palavra da peça, que remete aos desfiles de Carnaval. Parte, aliás, é de antigas fantasias.
Mas o melhor da "arte" de "Ela" está menos nas vestes luxuosas e mais nos simples panos, como o que cobre o Cardeal, esvoaçante -ao mesmo tempo significativo e, por si só, engraçado.


Peça: Ela
Autor: Jean Genet
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: Zé Celso, Marcelo Drummond, Fransérgio Araújo e Vadim Nikitin Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, tel. 011/606-2818)
Quando: qui a sex, às 21h; dom, às 19h
Quanto: R$ 20



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