São Paulo, sábado, 04 de novembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA
Estranha metafísica

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O filósofo e economista Pietro Verri (1728-97) foi um dos grandes iluministas da Lombardia no século 18. Escrito entre 1770 e 1777, mas somente publicado sete anos depois da morte do autor, "Observações sobre a Tortura" é um libelo contra os tormentos infligidos aos réus como método para alcançar a verdade em processos criminais da época. A tortura foi legalmente praticada na Lombardia até 1784.
Quando Verri escreveu seu livro, a tortura como instrumento judicial estava baseada na presunção da culpa do acusado e numa justiça que prezava a confissão acima das provas, e a despeito delas. Ao tomar o partido da razão, recorrendo à tradição de Cícero e Sêneca, entre outros, o autor anuncia um ponto de vista mais humanista e justo: presume a inocência do acusado e transfere o ônus da prova aos que o acusam: "Mais valeria perdoar 20 culpados do que sacrificar um inocente".
Hoje, em países democráticos como o Brasil, onde há leis que a criminalizam explicitamente, a tortura persiste de forma sub-reptícia e sistemática, como castigo, intimidação, controle e retaliação perpetrados por maus policiais contra suspeitos e detentos, em geral pobres e negros. A tortura passa a ser uma forma de discriminação social e racial, que as elites ignoram ou menosprezam por se sentirem a salvo dos torturadores, como lembrou Paulo Sérgio Pinheiro em artigo publicado na última segunda-feira nesta Folha.
A tortura contra a qual Verri escreve está circunscrita a um outro âmbito. A começar pelo fato de ser uma prática legal e estar diretamente ligada à construção da verdade por um sistema judicial específico e absurdo. Verri condena a tortura como horror e degradação humana, que ela sempre é, mas também, e principalmente, como método violento para alcançar uma suposta verdade por um sistema judicial fundado na confissão. E é aí que ele encontra todos os argumentos lógicos para repudiá-la.
Verri toma um processo do século 17 como exemplo para a sua argumentação. Em 1630, Milão foi assolada pela peste. Dois terços da população morreram. Sob um clima de horror e fanatismo, e com base no boato de que a epidemia teria sido deflagrada por criminosos que besuntavam um ungento contaminado pelas paredes da cidade, duas mulheres denunciaram um comissário de saúde, que foi preso e torturado. Depois de várias flagelações, acabou confessando e denunciando outros inocentes que, sob novas sessões de tortura, também confessaram crimes que não cometeram, denunciando em seguida outros inocentes.
Verri descreve o processo em minúcias para mostrar que há uma contradição óbvia na tortura como método para se obter a verdade: ela perpetua a mentira. Para que os fatos se adaptem às mentiras anteriormente proferidas, e convertidas à força em "verdade", novas sessões de tortura são exigidas.
Para além dessa condenação veemente, no entanto, o livro de Verri levanta ainda, por analogia, na caricatura da situação absurda que descreve, uma questão bem menos consensual, que é a da construção da verdade pela Justiça.
A jornalista americana Janet Malcolm, num livro inédito no Brasil ("The Crime of Sheila McGough", ed. Knopf), demonstra que a verdade da Justiça é fruto de um teatro, de um espetáculo, e que dizê-la pura e simplesmente num tribunal muitas vezes não só não produz nenhum efeito como pode significar um ato suicida por parte do réu inocente. A Justiça em geral não enxerga meios-tons. A verdade judicial tem de ser encenada, o que permite à desonestidade por vezes ser mais convincente que a honestidade.
O livro de Verri não chega a tanto. É um documento histórico e, embora tratando de questões que extrapolam o seu tempo, circunscreve-se às preocupações da época: está mais interessado em exterminar os resquícios da barbárie do que em questionar os paradoxos da civilização. Ainda assim, se tomado como parábola, não deixa de sugerir, já no século 18, o problema da construção da verdade judicial: "Nossa prática penal é realmente um labirinto de estranha metafísica".


Observações sobre a Tortura
Osservazioni sulla Tortura
   
Autor: Pietro Verri
Tradução: Federico Carotti
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 17,50 (130 págs.)




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