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RESENHA DA SEMANA
Estranha metafísica
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O filósofo e economista
Pietro Verri (1728-97) foi
um dos grandes iluministas da
Lombardia no século 18. Escrito
entre 1770 e 1777, mas somente
publicado sete anos depois da
morte do autor, "Observações
sobre a Tortura" é um libelo
contra os tormentos infligidos
aos réus como método para alcançar a verdade em processos
criminais da época. A tortura foi
legalmente praticada na Lombardia até 1784.
Quando Verri escreveu seu livro, a tortura como instrumento
judicial estava baseada na presunção da culpa do acusado e
numa justiça que prezava a confissão acima das provas, e a despeito delas. Ao tomar o partido
da razão, recorrendo à tradição
de Cícero e Sêneca, entre outros,
o autor anuncia um ponto de
vista mais humanista e justo:
presume a inocência do acusado
e transfere o ônus da prova aos
que o acusam: "Mais valeria perdoar 20 culpados do que sacrificar um inocente".
Hoje, em países democráticos
como o Brasil, onde há leis que a
criminalizam explicitamente, a
tortura persiste de forma sub-reptícia e sistemática, como castigo, intimidação, controle e retaliação perpetrados por maus
policiais contra suspeitos e detentos, em geral pobres e negros.
A tortura passa a ser uma forma
de discriminação social e racial,
que as elites ignoram ou menosprezam por se sentirem a salvo
dos torturadores, como lembrou Paulo Sérgio Pinheiro em
artigo publicado na última segunda-feira nesta Folha.
A tortura contra a qual Verri
escreve está circunscrita a um
outro âmbito. A começar pelo
fato de ser uma prática legal e estar diretamente ligada à construção da verdade por um sistema judicial específico e absurdo.
Verri condena a tortura como
horror e degradação humana,
que ela sempre é, mas também,
e principalmente, como método
violento para alcançar uma suposta verdade por um sistema
judicial fundado na confissão. E
é aí que ele encontra todos os argumentos lógicos para repudiá-la.
Verri toma um processo do século 17 como exemplo para a
sua argumentação. Em 1630,
Milão foi assolada pela peste.
Dois terços da população morreram. Sob um clima de horror e
fanatismo, e com base no boato
de que a epidemia teria sido deflagrada por criminosos que besuntavam um ungento contaminado pelas paredes da cidade,
duas mulheres denunciaram
um comissário de saúde, que foi
preso e torturado. Depois de várias flagelações, acabou confessando e denunciando outros
inocentes que, sob novas sessões
de tortura, também confessaram crimes que não cometeram,
denunciando em seguida outros
inocentes.
Verri descreve o processo em
minúcias para mostrar que há
uma contradição óbvia na tortura como método para se obter a
verdade: ela perpetua a mentira.
Para que os fatos se adaptem às
mentiras anteriormente proferidas, e convertidas à força em
"verdade", novas sessões de tortura são exigidas.
Para além dessa condenação
veemente, no entanto, o livro de
Verri levanta ainda, por analogia, na caricatura da situação absurda que descreve, uma questão bem menos consensual, que
é a da construção da verdade pela Justiça.
A jornalista americana Janet
Malcolm, num livro inédito no
Brasil ("The Crime of Sheila
McGough", ed. Knopf), demonstra que a verdade da Justiça é fruto de um teatro, de um
espetáculo, e que dizê-la pura e
simplesmente num tribunal
muitas vezes não só não produz
nenhum efeito como pode significar um ato suicida por parte
do réu inocente. A Justiça em geral não enxerga meios-tons. A
verdade judicial tem de ser encenada, o que permite à desonestidade por vezes ser mais convincente que a honestidade.
O livro de Verri não chega a
tanto. É um documento histórico e, embora tratando de questões que extrapolam o seu tempo, circunscreve-se às preocupações da época: está mais interessado em exterminar os resquícios da barbárie do que em
questionar os paradoxos da civilização. Ainda assim, se tomado
como parábola, não deixa de sugerir, já no século 18, o problema
da construção da verdade judicial: "Nossa prática penal é realmente um labirinto de estranha
metafísica".
Observações sobre a Tortura
Osservazioni sulla Tortura
Autor: Pietro Verri
Tradução: Federico Carotti
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 17,50 (130 págs.)
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