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São Paulo, quinta-feira, 04 de dezembro de 2003

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CONTARDO CALLIGARIS

De volta ao teatro Oficina

No sábado, dia 13 de dezembro, no teatro Oficina, estreará o terceiro momento de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, narrados por Zé Celso. É "O Homem - 2ª Parte - Da Revolta ao Trans-Homem".
Pude assistir, na sexta passada, a um ensaio corrido. Agradeço a Patrícia Aguille, atriz da companhia, que levou meu pedido a Zé Celso, e ao próprio, por me convidar.
"O Homem - 1ª Parte" narrava a formação do povo brasileiro e, em particular, do sertanejo. Agora é a vez de contar a história de Antônio Conselheiro, desde as vendetas entre famílias que assolavam a vida de seus antepassados cearenses até a fundação e a consolidação de Canudos.
Surpresa: o Antônio Conselheiro de Euclydes/Zé Celso não é apenas um lunático de outros tempos e lugares. De uma certa forma, ele é um herói moderno. Começa fugindo das tradições pelas quais a obrigação da vingança entre famílias seria mais importante do que a vida de cada um. Continua desrespeitando as tradições quando escolhe ficar com a mulher que ama e que é alegre demais, preferindo a paixão à honra. Se matasse (de fato, foi acusado injustamente de matricídio e uxoricídio e logo solto), seria por amor e ciúme, não por obediência a um código ancestral.
Quem deixa as tradições perde o lar e começa uma errância que é, ao mesmo tempo, liberdade e sofrimento. Os sertões, por onde se deu a errância de Antônio Conselheiro, podem ser uma boa metáfora do deserto moderno.
A liberação dos escravos e a seca de 1877 (momentos memoráveis da peça) são uma espécie de versão brasileira do capítulo final do primeiro livro do "Capital", em que Marx conta como, na Inglaterra, o capitalismo incipiente quis que os servos ligados à terra fossem "liberados" para constituírem hordas de sujeitos sem função e sem lugar designado: braços à venda para as manufaturas inglesas. Ora, para os escravos e os sertanejos da seca, não havia manufaturas. Deve ser por isso que ainda há sem-terra errando pelo campo brasileiro ou sertanejos errando pelas rodoviárias do país.
A essa "liberação" política corresponde uma "liberação" (com as mesmas aspas) subjetiva. Agora que não sou mais servo de ninguém, quem sou eu? Os "liberados" ficam sem terra, sem teto e, sobretudo, sem saber quem eles são no vasto mundo; é compreensível que possam ser nostálgicos da própria ordem que os oprimia. Sem, por isso, parar de defender, paradoxalmente, sua custosa liberdade: o Conselheiro era, ao mesmo tempo, libertário em matéria de amor, insubordinado e monárquico.
Existem recursos contra as dores da condição moderna, e eles também aparecem na história do Conselheiro. Quando a gente deixa o conforto das tradições do vilarejo, resta, como compensação pela comunidade perdida, a relação de cada um com a divindade. Como sabem os eremitas, se erro sozinho no deserto, Deus fala mais facilmente. Além disso, quem perde o vilarejo sonha com "uma nova cidade" (como canta uma música bonita da peça). E surgem as Canudos da história.
Zé Celso é sensível, obviamente, à dimensão de esperança de Canudos. Também é sensível à consolação que a referência divina oferece a quem se perde no sertão: na peça, um coro de Ave Maria ao redor do fogo de chão, em Canudos, é tocante. Pensei que deveria me irritar menos com a "Mística", que é a doutrina espiritual do Movimento dos Sem-Terra.
Mas a simpatia por Canudos não é incondicional. Apesar da licença amorosa, a "nova cidade", tanto sonhada, se degenera: constitui-se uma guarda pretoriana, acontecem prisões abusivas e repressões arbitrárias. Enfim, é proposto um juramento aparentemente engraçado, e o público é convidado a jurar junto com os cidadãos de Canudos. Eu não gosto muito de juramentos e uso um truque: quando não concordo, cruzo o índex e o médio da mão esquerda, e aí o juramento não vale. Fiz isso na hora em que jurei fidelidade à monarquia.
A razão (republicana, neste caso) é um rolo compressor que exige ordem e progresso. E, com isso, cria exclusão à beça, se não extermínio. Walter Benjamin disse uma vez que a esperança nos é dada só graças àqueles que são privados de toda esperança, ou seja, que a salvação virá dos excluídos. A Canudos de Euclydes/ Zé Celso é menos otimista, atravessada (isso, claro, só vale para Zé Celso) por meio século de fracassos do socialismo real.
Assim, Canudos é o lugar de dois impasses cruciais. Há o impasse entre a razão moderna, a liberdade que ela mesma promove e a derrelição e a injustiça que ela produz como resíduos gasosos de sua combustão. E há o impasse da revolta que nunca está à altura da esperança que a levanta.
Mas não imagine que o espetáculo seja triste. Qualquer história se torna uma festa no instante em que descobrimos que ela é a nossa. Ou melhor, o momento dessa apropriação é uma festa. Zé Celso e o Oficina nos proporcionam exatamente a experiência desse momento.
Por isso, "Os Sertões" é, como Zé Celso queria que fosse, um coro no qual, se soubéssemos as palavras, gostaríamos de entrar.
Falando em coro, as duas vozes que puxam o samba do Oficina são diferentes e ambas primorosas: a de Letícia Coura e a de Adriana Capparelli. Não podendo estar em São Paulo na estréia, enfiei na mala um disco de cada uma ("Letícia Coura Canta Boris Vian" e, de Adriana, "Pequeno Circo Íntimo"). Na noite do dia 13, para me consolar, escutarei os dois.
"O Homem - 2ª Parte" estará em cartaz nos dias 13,14, 20, 21 e 23 de dezembro. Depois disso, aos sábados e domingos, a partir do 24 de janeiro.

ccalligari@uol.com.br


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