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CONTARDO CALLIGARIS
De volta ao teatro Oficina
No sábado, dia 13 de dezembro, no teatro Oficina, estreará o terceiro momento de "Os
Sertões", de Euclydes da Cunha,
narrados por Zé Celso. É "O Homem - 2ª Parte - Da Revolta ao
Trans-Homem".
Pude assistir, na sexta passada,
a um ensaio corrido. Agradeço a
Patrícia Aguille, atriz da companhia, que levou meu pedido a Zé
Celso, e ao próprio, por me convidar.
"O Homem - 1ª Parte" narrava
a formação do povo brasileiro e,
em particular, do sertanejo. Agora é a vez de contar a história de
Antônio Conselheiro, desde as
vendetas entre famílias que assolavam a vida de seus antepassados cearenses até a fundação e a
consolidação de Canudos.
Surpresa: o Antônio Conselheiro de Euclydes/Zé Celso não é
apenas um lunático de outros
tempos e lugares. De uma certa
forma, ele é um herói moderno.
Começa fugindo das tradições pelas quais a obrigação da vingança
entre famílias seria mais importante do que a vida de cada um.
Continua desrespeitando as tradições quando escolhe ficar com a
mulher que ama e que é alegre
demais, preferindo a paixão à
honra. Se matasse (de fato, foi
acusado injustamente de matricídio e uxoricídio e logo solto), seria
por amor e ciúme, não por obediência a um código ancestral.
Quem deixa as tradições perde
o lar e começa uma errância que
é, ao mesmo tempo, liberdade e
sofrimento. Os sertões, por onde se
deu a errância de Antônio Conselheiro, podem ser uma boa metáfora do deserto moderno.
A liberação dos escravos e a seca
de 1877 (momentos memoráveis
da peça) são uma espécie de versão brasileira do capítulo final do
primeiro livro do "Capital", em
que Marx conta como, na Inglaterra, o capitalismo incipiente
quis que os servos ligados à terra
fossem "liberados" para constituírem hordas de sujeitos sem
função e sem lugar designado:
braços à venda para as manufaturas inglesas. Ora, para os escravos e os sertanejos da seca, não
havia manufaturas. Deve ser por
isso que ainda há sem-terra errando pelo campo brasileiro ou
sertanejos errando pelas rodoviárias do país.
A essa "liberação" política corresponde uma "liberação" (com
as mesmas aspas) subjetiva. Agora que não sou mais servo de ninguém, quem sou eu? Os "liberados" ficam sem terra, sem teto e,
sobretudo, sem saber quem eles
são no vasto mundo; é compreensível que possam ser nostálgicos
da própria ordem que os oprimia.
Sem, por isso, parar de defender,
paradoxalmente, sua custosa liberdade: o Conselheiro era, ao
mesmo tempo, libertário em matéria de amor, insubordinado e
monárquico.
Existem recursos contra as dores da condição moderna, e eles
também aparecem na história do
Conselheiro. Quando a gente deixa o conforto das tradições do vilarejo, resta, como compensação
pela comunidade perdida, a relação de cada um com a divindade.
Como sabem os eremitas, se erro
sozinho no deserto, Deus fala
mais facilmente. Além disso,
quem perde o vilarejo sonha com
"uma nova cidade" (como canta
uma música bonita da peça). E
surgem as Canudos da história.
Zé Celso é sensível, obviamente,
à dimensão de esperança de Canudos. Também é sensível à consolação que a referência divina
oferece a quem se perde no sertão:
na peça, um coro de Ave Maria ao
redor do fogo de chão, em Canudos, é tocante. Pensei que deveria
me irritar menos com a "Mística", que é a doutrina espiritual do
Movimento dos Sem-Terra.
Mas a simpatia por Canudos
não é incondicional. Apesar da licença amorosa, a "nova cidade",
tanto sonhada, se degenera: constitui-se uma guarda pretoriana,
acontecem prisões abusivas e repressões arbitrárias. Enfim, é proposto um juramento aparentemente engraçado, e o público é
convidado a jurar junto com os
cidadãos de Canudos. Eu não
gosto muito de juramentos e uso
um truque: quando não concordo, cruzo o índex e o médio da
mão esquerda, e aí o juramento
não vale. Fiz isso na hora em que
jurei fidelidade à monarquia.
A razão (republicana, neste caso) é um rolo compressor que exige ordem e progresso. E, com isso,
cria exclusão à beça, se não extermínio. Walter Benjamin disse
uma vez que a esperança nos é
dada só graças àqueles que são
privados de toda esperança, ou
seja, que a salvação virá dos excluídos. A Canudos de Euclydes/
Zé Celso é menos otimista, atravessada (isso, claro, só vale para
Zé Celso) por meio século de fracassos do socialismo real.
Assim, Canudos é o lugar de
dois impasses cruciais. Há o impasse entre a razão moderna, a liberdade que ela mesma promove
e a derrelição e a injustiça que ela
produz como resíduos gasosos de
sua combustão. E há o impasse da
revolta que nunca está à altura
da esperança que a levanta.
Mas não imagine que o espetáculo seja triste. Qualquer história
se torna uma festa no instante em
que descobrimos que ela é a nossa. Ou melhor, o momento dessa
apropriação é uma festa. Zé Celso
e o Oficina nos proporcionam
exatamente a experiência desse
momento.
Por isso, "Os Sertões" é, como Zé
Celso queria que fosse, um coro
no qual, se soubéssemos as palavras, gostaríamos de entrar.
Falando em coro, as duas vozes
que puxam o samba do Oficina
são diferentes e ambas primorosas: a de Letícia Coura e a de
Adriana Capparelli. Não podendo estar em São Paulo na estréia,
enfiei na mala um disco de cada
uma ("Letícia Coura Canta Boris
Vian" e, de Adriana, "Pequeno
Circo Íntimo"). Na noite do dia
13, para me consolar, escutarei os
dois.
"O Homem - 2ª Parte" estará
em cartaz nos dias 13,14, 20, 21 e
23 de dezembro. Depois disso, aos
sábados e domingos, a partir do
24 de janeiro.
ccalligari@uol.com.br
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