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FERNANDO GABEIRA
Entre tiroteios e obstruções
Duas coisas me preocupam
no momento. Uma delas é o
tiroteio noturno no Rio; a outra, o
processo de obstrução na Câmara
que torna inútil nossa presença
em Brasília.
Como estão presentes em minha cabeça, comecei até a encontrar os pontos que as unem. Os tiroteios no Rio acontecem por disputa de posições ou por causa de
compromissos não honrados,
"banhos", na gíria do tráfico.
A obstrução na Câmara também acontece por disputas de posições e por compromissos não
cumpridos. Obstrução e tiroteio
são permutáveis na minha cabeça. Distraído, posso entrar no plenário me perguntando se haverá
tiroteio ou, então, à noite no Rio,
indagar na cama se haverá obstrução na madrugada.
No entanto são dois problemas
que poderiam ser atacados. Parte
da classe média do Rio escreve
cartas desesperadas aos jornais.
Alguns colunistas também arrancam os cabelos. Por que não formular um plano de ação com critérios claros de avaliação quinzenal? Aí está a raiz do desespero: a
liderança ou, pelo menos, a parceria do governo não existe. E os
pontos de contato entre governo e
opinião pública se perderam no
Rio.
A obstrução no Congresso poderia ser solucionada desde o princípio. Era preciso um governo
que, apoiado nos milhões de votos, tivesse projetos claros e estivesse disposto a buscar uma
maioria político-moral. Isso implica aceitar derrotas em certos
momentos. E implica também
uma certa flexibilidade para negociar, mas tudo subordinado a
um claro projeto de transformação.
Foi possível obter apoio do Congresso para construir uma nova
capital. Agora só se decide caso a
caso, com negociações precisas e
alguns foguetes para comemorar
as vitórias, exatamente como nos
morros, os foguetes anunciando a
chegada de um novo estoque de
drogas.
Por que chegamos a esse ponto,
no Rio e em Brasília, lugares onde
vivo semanalmente? É arriscado
enfeixar tudo numa só causa. Há
uma, entretanto, que merece exame: a transformação do crescimento econômico num valor que
justifica todos os outros.
Creio que Willy Brandt ou Olof
Palme, alguém da social-democracia, afirmava que governar
era ter uma boa política econômica. Isso resolveria 90% dos problemas, e o resto ou viria por atração
ou nem comprometeria o governo.
Basta estudar a história da social-democracia européia, suas
longas batalhas ideológicas, para
compreender que essa tendência
reducionista estava implícita em
suas teses.
Há dois pontos a acrescentar. O
primeiro deles: o Brasil não está
na Europa e tem problemas seriíssimos, talvez maiores do que tinha a social-democracia quando
arrancou para o sucesso eleitoral
no pós-guerra.
O segundo ponto é a própria
fragilidade da tese. A redução de
todos os problemas ao crescimento material implica uma perigosa
subestimação dos valores. Mesmo
num país rico como os Estados
Unidos, a suposta superdeterminação do econômico não se revelou nas eleições.
Houve um grande espaço para
a discussão de valores. Você pode
achar que a união gay não seja
moralmente condenável e que,
por outro lado, é insuportável a
morte de milhares de inocentes
na Guerra do Iraque. Muitos norte-americanos discordam dessa
premissa e votaram em Bush para fortalecer a família tradicional. Mas é inegável que tudo isso
é uma disputa que envolve valores.
Sempre tive problemas com puritanos, dentro e fora da esquerda. Parti da suposição de que, ao
sentirem a inadequação de suas
idéias, costumam cair numa situação oposta, uma espécie de
pragmatismo amoral. Antes tudo
era proibido, agora vale tudo.
As duas situações que me preocupam, tiroteios no Rio e obstrução periódica no Congresso, são
faces de uma mesma evolução. De
um lado, as elites falharam em
oferecer alternativas, multiplicando a sedução colorida do universo de consumo, mantendo
grande parte da juventude à margem. De outro lado, parte da polícia se deixou seduzir e cansou de
proteger propriedades, sem tentar
construir a própria fortuna.
A obstrução significa algo quase
tão desolador. As esperanças alimentadas e vendidas ao longo de
um quarto de século deram lugar
a um cinismo total, que me lembra um pouco o texto de "A Visita
da Velha Senhora": o mundo fez
de mim uma puta, vou fazer do
mundo um prostíbulo.
Parece ingênuo e idealista propor um outro caminho.
Nos tempos em que as pessoas
liam e se diziam marxistas, ainda
era possível dizer para elas a frase
de seu mestre: o concreto é o concreto porque sintetiza múltiplas
determinações.
A social-democracia herdou do
marxismo vulgar a tese de que o
econômico define tudo, transforma tudo num mero reflexo. Esse é
um bloqueio; outro bloqueio é
pensar que uma boa repressão,
por ela própria, vai silenciar as
armas no Rio.
O buraco é mais embaixo, embora uma repressão eficaz seja indispensável. Tenho medo de me
acostumar com esses impasses.
Em Porto Príncipe, de madrugada, ouvi um tiroteio, acordei, virei
na cama, dormi de novo. Aquilo
embalou meu sono, como se estivesse em casa.
Quanto às obstruções, a essas
não me acostumo. Se o cinismo
entra por uma porta, você tem de
sair pela outra. Senão vira zumbi,
essa figura tão comum na mitologia haitiana: alguém que já morreu, mas executa como um sonâmbulo as ordens do mestre.
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