São Paulo, sábado, 04 de dezembro de 2004

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FERNANDO GABEIRA

Entre tiroteios e obstruções

Duas coisas me preocupam no momento. Uma delas é o tiroteio noturno no Rio; a outra, o processo de obstrução na Câmara que torna inútil nossa presença em Brasília.
Como estão presentes em minha cabeça, comecei até a encontrar os pontos que as unem. Os tiroteios no Rio acontecem por disputa de posições ou por causa de compromissos não honrados, "banhos", na gíria do tráfico.
A obstrução na Câmara também acontece por disputas de posições e por compromissos não cumpridos. Obstrução e tiroteio são permutáveis na minha cabeça. Distraído, posso entrar no plenário me perguntando se haverá tiroteio ou, então, à noite no Rio, indagar na cama se haverá obstrução na madrugada.
No entanto são dois problemas que poderiam ser atacados. Parte da classe média do Rio escreve cartas desesperadas aos jornais. Alguns colunistas também arrancam os cabelos. Por que não formular um plano de ação com critérios claros de avaliação quinzenal? Aí está a raiz do desespero: a liderança ou, pelo menos, a parceria do governo não existe. E os pontos de contato entre governo e opinião pública se perderam no Rio.
A obstrução no Congresso poderia ser solucionada desde o princípio. Era preciso um governo que, apoiado nos milhões de votos, tivesse projetos claros e estivesse disposto a buscar uma maioria político-moral. Isso implica aceitar derrotas em certos momentos. E implica também uma certa flexibilidade para negociar, mas tudo subordinado a um claro projeto de transformação.
Foi possível obter apoio do Congresso para construir uma nova capital. Agora só se decide caso a caso, com negociações precisas e alguns foguetes para comemorar as vitórias, exatamente como nos morros, os foguetes anunciando a chegada de um novo estoque de drogas.
Por que chegamos a esse ponto, no Rio e em Brasília, lugares onde vivo semanalmente? É arriscado enfeixar tudo numa só causa. Há uma, entretanto, que merece exame: a transformação do crescimento econômico num valor que justifica todos os outros.
Creio que Willy Brandt ou Olof Palme, alguém da social-democracia, afirmava que governar era ter uma boa política econômica. Isso resolveria 90% dos problemas, e o resto ou viria por atração ou nem comprometeria o governo.
Basta estudar a história da social-democracia européia, suas longas batalhas ideológicas, para compreender que essa tendência reducionista estava implícita em suas teses.
Há dois pontos a acrescentar. O primeiro deles: o Brasil não está na Europa e tem problemas seriíssimos, talvez maiores do que tinha a social-democracia quando arrancou para o sucesso eleitoral no pós-guerra.
O segundo ponto é a própria fragilidade da tese. A redução de todos os problemas ao crescimento material implica uma perigosa subestimação dos valores. Mesmo num país rico como os Estados Unidos, a suposta superdeterminação do econômico não se revelou nas eleições.
Houve um grande espaço para a discussão de valores. Você pode achar que a união gay não seja moralmente condenável e que, por outro lado, é insuportável a morte de milhares de inocentes na Guerra do Iraque. Muitos norte-americanos discordam dessa premissa e votaram em Bush para fortalecer a família tradicional. Mas é inegável que tudo isso é uma disputa que envolve valores.
Sempre tive problemas com puritanos, dentro e fora da esquerda. Parti da suposição de que, ao sentirem a inadequação de suas idéias, costumam cair numa situação oposta, uma espécie de pragmatismo amoral. Antes tudo era proibido, agora vale tudo.
As duas situações que me preocupam, tiroteios no Rio e obstrução periódica no Congresso, são faces de uma mesma evolução. De um lado, as elites falharam em oferecer alternativas, multiplicando a sedução colorida do universo de consumo, mantendo grande parte da juventude à margem. De outro lado, parte da polícia se deixou seduzir e cansou de proteger propriedades, sem tentar construir a própria fortuna.
A obstrução significa algo quase tão desolador. As esperanças alimentadas e vendidas ao longo de um quarto de século deram lugar a um cinismo total, que me lembra um pouco o texto de "A Visita da Velha Senhora": o mundo fez de mim uma puta, vou fazer do mundo um prostíbulo.
Parece ingênuo e idealista propor um outro caminho.
Nos tempos em que as pessoas liam e se diziam marxistas, ainda era possível dizer para elas a frase de seu mestre: o concreto é o concreto porque sintetiza múltiplas determinações.
A social-democracia herdou do marxismo vulgar a tese de que o econômico define tudo, transforma tudo num mero reflexo. Esse é um bloqueio; outro bloqueio é pensar que uma boa repressão, por ela própria, vai silenciar as armas no Rio.
O buraco é mais embaixo, embora uma repressão eficaz seja indispensável. Tenho medo de me acostumar com esses impasses. Em Porto Príncipe, de madrugada, ouvi um tiroteio, acordei, virei na cama, dormi de novo. Aquilo embalou meu sono, como se estivesse em casa.
Quanto às obstruções, a essas não me acostumo. Se o cinismo entra por uma porta, você tem de sair pela outra. Senão vira zumbi, essa figura tão comum na mitologia haitiana: alguém que já morreu, mas executa como um sonâmbulo as ordens do mestre.


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