São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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A 1ª SESSÃO DE CINEMA

Eduardo Coutinho reencontra personagens de "O Fim e o Princípio" um ano depois das filmagens

Diretor vive encontro marcado no sertão

SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A ARAÇÁS (PB)

Quando foi embora de Araçás, no sertão da Paraíba, em setembro do ano passado, o cineasta Eduardo Coutinho se despediu dos homens e mulheres que entrevistou ali com a promessa do retorno: "Daqui a um ano eu volto, para mostrar o filme".
Era a primeira vez que o autor de "Cabra Marcado para Morrer" (1984), considerado o maior documentarista brasileiro, firmava essa espécie de compromisso.
O agricultor Chico Moisés, 58, respondeu com a voz da dúvida: "Num garanto que eu tô vivo". Da boca para dentro, Coutinho, 72, tampouco tinha a certeza de que honraria o encontro marcado.
"Uma pessoa de 18 anos pode voltar para todos os lugares. Na minha idade, dizer isso tem outro peso", pondera.
Na sexta-feira retrasada, Coutinho tomou um avião no Rio de Janeiro, onde vive, fez escala em Salvador (BA), seguiu para Recife (PE), embarcou em outro vôo para Juazeiro do Norte (CE). Lá, subiu num carro e percorreu 300 quilômetros.
Quando Coutinho finalmente pisou outra vez em Araçás, 14 meses depois de sua partida, era madrugada de sábado.
Como prometido, o diretor levava com ele o documentário que resultou das entrevistas no alto sertão paraibano -"O Fim e o Princípio", em cartaz no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte- e a idéia de exibi-lo naquela noite aos 325 moradores de Araçás.

Divertimento
Chico Moisés faltou à sessão. "Não vou a divertimento!", disse ao diretor, quando este bateu à sua porta para convidá-lo.
Coutinho não retrucou. Achou que a atitude desafiadora era coerente com o personagem que em seu filme interroga sem cessar, inclusive a si mesmo: "Não sei se sei. Penso que sei. Será que sei?".
Assim como Chico Moisés, os sertanejos Leocádio do Nascimento e Zé de Souza, embora não estivessem na platéia, ganharam forma na tela, grudada à lateral de um caminhão. Os dois, porém, já não andam por Araçás. Zé de Souza morreu em maio passado. Leocádio, em julho.
Com um silêncio espesso, a numerosa platéia acompanha o último diálogo de Leocádio com Coutinho. "Crer em Deus é ilusão? O sr. acha que vai alguém pro céu?", pergunta o sertanejo. O cineasta se ancora na dúvida: "Gostaria de saber".
A caminho de Araçás, Coutinho previra lágrimas e quis evitá-las. "Se alguém chorar, não use zoom [lente de aproximação]. Se puder, ande para trás", disse ao câmera e fotógrafo Ricardo Stein, que o acompanhava, registrando imagens para o futuro DVD do filme.
Stein não é um neófito. Foi em 1969 que soltaram pela primeira vez uma câmera em suas mãos e em seus ouvidos o comando: "Agora você me segue!". O autor da ordem era Glauber Rocha (1939-1981), que filmava "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro".
No dia seguinte à exibição de "O Fim e o Princípio" em Araçás, as lágrimas brotaram diante de Coutinho, numerosas, irreprimíveis.
Sobrinha de Zé de Souza, Francisca Batista de Sousa, a Chiquinha, 28, contrastava a memória do tio vigoroso de sua infância com as imagens vistas na noite anterior, de um homem idoso e surdo, que descreve a Coutinho a rotina de sua solidão:
"Passo a tarde todinha sentado, olhando quem passa. Mas a minha vista é pouca, não dá. Passa, mas eu não sei quem é. Muitos passam pra lá e pra cá".
"O Fim e o Princípio" desvelou a Araçás um Zé de Souza que havia ficado oculto em seu próprio silêncio. A revelação não foi sem dor para Chiquinha: "Pensar que passei tantas vezes ali e nem falei com ele. Agora está sem jeito".
Chiquinha chora. O choro cresce, contagia a família em volta. A câmera de Stein está desligada. E assim permanece.


A jornalista Silvana Arantes e o repórter fotográfico Tuca Vieira viajaram a convite da Petrobras, patrocinadora do filme "O Fim e o Princípio"


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