São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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A 1ª SESSÃO DE CINEMA

400 pessoas viram "O Fim e o Princípio" em Araçás; saúde frágil e medo retiveram personagens em casa

Noite teve vento, pipoca e estrela ausente

Tuca Vieira/Folha Imagem
A moradora de Araçás Maria Chicute (à esq.) e as personagens Antônia da Conceição (centro) e Maria Borges assistem ao filme


DA ENVIADA A ARAÇÁS

Há seis meses não cai uma gota de água do céu sobre Araçás. No entanto, "toda noite venta forte e rebola tudo, a roupa no varal, a poeira. É a época", diz Rosilene Batista de Sousa, a Rosa.
A ventania noturna foi o que inquietou Rosa quando ela soube que a primeira sessão de cinema na história de Araçás ocorreria no quintal de sua casa.
O vento poderia fazer rebolar a tela. E fez. Mas o diretor Eduardo Coutinho não pensaria em outro endereço para exibir "O Fim e o Princípio" no povoado. Sem Rosa, o filme de Coutinho não existiria. Ao menos, não como é.
Professora, agente da pastoral da criança, Rosa, 32, foi a mediadora entre o cineasta e as 86 famílias de Araçás (todas aparentadas), nas quatro semanas em que Coutinho filmou na cidade.
Não houve porta no povoado que não se abrisse para o diretor. "Em Araçás, até os passarinhos gostam da Rosa", diz Francisco Batista de Assis, 79, um dos que a professora convenceu a mostrar ao diretor sua casa e sua história.
Quando a imagem de Assis ocupou a tela, ele aplaudiu a si mesmo. Perna atrofiada, andar trôpego, Assis resumiu depois a sensação de se ver no filme: "Fui aleijado e parece que voltei melhor".
José Paulo de Albuquerque, 67, foi o primeiro a chegar para a sessão. Uma hora antes, vindo da vizinha Baixio dos Albuquerques. Quando avistou Albuquerque retirando da caminhonete o carrinho de pipoca e cachorro-quente (R$ 0,50 cada um), Coutinho levou as mãos à cabeça. "Ai, meu Deus. Vai ser mais uma culpa. Vamos arruinar o pipoqueiro."
O diretor previa o fracasso da sessão. Não sem motivos. À tarde, Coutinho havia ido visitar alguns de seus personagens e convidá-los ao cinema. Esbarrou nos argumentos da saúde frágil, do cansaço, dos hábitos caseiros.
"Velho só gosta de casa", disse dona Maria Borges, 81. Ela gosta também, e especialmente, de "uma novelinha". Agoniada com a crise no romance da "índia" com "o moço bonito", dona Maria não quer perder nenhum capítulo de "Alma Gêmea", a trama global das seis. O diretor de cinema não desiste da batalha. Coutinho diz a dona Maria que ficará chateado se ela faltar à sessão. Explica que, se desejasse público numeroso, exibiria o filme em São João do Rio do Peixe, distrito-sede de Araçás. Mas faz questão de poucas presenças, como a dela, a quem "O Fim e o Princípio" deve parte de sua existência.
A insistência do cineasta intriga o pensamento de dona Maria. "Que merecimento eu tenho pro senhor vir pra perto d'eu?" E amolece seu coração romântico. Quando o filme começa, ela está na primeira fila.
Acaba a sessão, e Coutinho vai até ela. Pergunta se valeu a pena estar ali. Ela diz que sim. Ele conclui: "Hoje, foi a senhora que fez uma novelinha pra gente ver".
Atrás de Maria Borges, as 250 cadeiras da platéia estão tomadas. Pelo menos outras 150 pessoas amontoam-se em volta. Algumas, nos assentos das motos em que chegaram até ali, vindas de cidadezinhas da região.
Todas acompanham o filme atentas, enquanto as crianças jogam bola por perto e o vento deixa todos cobertos de poeira.

"A torto e a direito"
O pipoqueiro Albuquerque não tinha dúvidas de que haveria gente "a torto e a direito". Experiente em rastrear "lugar de festa, em geral, forró", ele trabalha ao lado do filho, Francisco Gilberto de Albuquerque, 42, e da neta, Irislene Dantas de Albuquerque, 12.
"Ela [Irislene] foi a primeira. O filho homem tem oito anos. Não presta pra trabalhar ainda", diz o avô. Os homens se ocupam da pipoca e dos sanduíches, e Irislene cuida da bombonnière portátil.
A primeira noite de cinema em Araçás teve pipoca e também uma estrela. Maria Ambrosina Dantas, a Mariquinha, 81, foi quem mais seduziu a platéia.
No documentário, ela afirma ter o afeto de pouca gente em Araçás. "Porque eu também sou nojenta. Não adulo ninguém. Gosto de quem eu gostar."
Todo mundo gostou de ouvi-la em "O Fim e o Princípio". A platéia riu e gargalhou de seu gosto confesso pelo fumo do cachimbo e por "uma lapada" de cachaça. "Gostei mais da Mariquinha. Ela falou como uma pessoa letrada. Deixou bonito o nosso sertão", foi a avaliação de Josefa de Abreu, 57, sobre o filme.
Do sucesso que fez, dona Mariquinha apenas ouviu falar. Ela não foi à sessão. Temeu que, vazia, sua casa fosse chamariz para roubos, cada vez mais freqüentes na região.
O medo de perder o que têm também reteve em casa o casal Rita, 71, e Zeca do Nascimento, 65. Com a cirrose agravada, Geraldo do Nascimento, o Vigário, já não sai à rua. A saúde frágil do poeta Zequinha Amador, 82, impediu-o de se ver recitando versos.
"Eu fiquei só olhando para lá [na direção da casa de Rosa] e pedindo que Deus proteja e corra tudo em paz", disse Rita a Coutinho, no dia seguinte.
No domingo, o cineasta também foi rever a "estrela" Mariquinha. Ela reafirmou o medo que tem da morte -"muito"- e o afeto pelo cineasta. "Estava com dor de cabeça. Foi ver o senhor, que passou. Amor é bicho bom."
Os dois se despediram com um pedido dela: "Se eu morrer, reze por mim". Se houvesse assistido a "O Fim e o Princípio", dona Mariquinha saberia que, no diálogo com Leocádio, o cineasta afirma que "gostaria de acreditar" em Deus, o que equivale a descrer.
Leocádio, um devoto, assegura que "a reza é uma poesia". Terá sido esse o pensamento que inspirou Coutinho a deixar dona Mariquinha com uma afirmação de absoluta reciprocidade: "Se eu morrer, reze por mim", disse, indo embora. (SILVANA ARANTES)


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