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WALTER SALLES
H2O, Argentina e um adeus a Cássia Eller
Se você passou o final de ano
em algum canto do país onde
havia eletricidade, é provável que
tenha sido enredado em conversas e mais conversas sobre o desempenho dos políticos que se
submeteram ao "Show do Milhão", ancorado por Silvio Santos.
"É incrível o poder de sedução
da música de baixa qualidade",
brincava o dramaturgo Noel Coward. O mesmo raciocínio poderia valer para alguns programas
de televisão. Luzes do cenário tremilicando como se fossem pano
de fundo para um concurso de
miss, música à Bernard Herrman
tentando criar uma tensão fantasmagórica onde ela não existe,
microfone-babador pendurado
na gravata do dono da casa, tudo
em "Show do Milhão" indica que
estamos no reino da farsa.
Começa o programa. Surpreendentemente, alguns momentos
são reveladores. Não deixa de ser
sintomático, por exemplo, que
Anthony Garotinho tenha se afogado na fórmula H2O justamente
na semana das enchentes que vitimaram o Estado do Rio. Como
também é sintomático que Paulo
Maluf tenha soçobrado na pergunta sobre aquilo que ele nunca
foi: santo.
Talvez não seja a ignorância de
um ou outro homem público que
nos surpreenda, e sim o fato de
que os percebemos, por uma vez,
cambaleantes, em dificuldade,
impossibilitados de usar os discursos prontos atrás dos quais
costumam se esconder. É paradoxal que esse (breve) desvendamento aconteça em um programa tão caricato, com perguntas
de nível do pré-vestibular.
No meio desse "topa tudo por
um refletor", deve-se saudar o
pragmatismo de Rosinha Matheus. Movida por uma espécie de
Realpolitik doméstica, Rosinha
confessou ao público que não esperava que o marido, Garotinho,
ultrapassasse a etapa mais rasteira da gincana. Rosinha sabe o
que tem em casa. Foi o momento
mais comovente deste já antológico "Show do Milhão".
Ainda a televisão, mas mudando de sinal. Vistos pelas lentes dos
canais de notícias norte-americanos, os protestos populares na Argentina e a invasão da Casa Rosada e do Congresso são o prenúncio de um caos institucional
que pode implodir o país.
As mesmas imagens podem ser
vistas de outra forma. Converso
com um jovem diretor que faz
parte da nova onda de cinema argentino. "O que parece uma baderna não o é, absolutamente.
Enxotamos um governo paralisado pelo FMI e, depois, enxotamos
um bando de corruptos peronistas. E as pessoas vão continuar a
se manifestar, até que surja uma
geração de políticos com outros
princípios", diz ele. Duhalde, que
foi vice de Menem e é homem de
folha corrida duvidosa, não perde
por esperar.
Não é muito difícil entender por
que a Argentina está do jeito que
está. O país misturou o populismo
irresponsável de Menem com um
servilismo irrestrito ao neoliberalismo. Sucateou boa parte de uma
sólida infra-estrutura estatal e
abriu a porta ao desemprego. Para piorar esse coquetel Molotov,
ainda optou por uma política
cambial suicida.
Há 25 anos, 9% dos argentinos
viviam em estado de pobreza. Hoje são 38%. Não é à toa que a Argentina é o país que concentra a
maior quantidade de protestos
populares da América do Sul. "A
ocupação das praças públicas pelos descontentes é uma prova de
vitalidade do país", diz meu amigo. Como cantava Cássia Eller:
"Não amarga, marginal/ defende
o teu pão/no pau".
Frio na espinha. O desaparecimento de Cássia Eller suscitou
uma onda moralista como não se
via desde a morte de outra pimentinha genial, Elis Regina.
Sua vida pessoal foi exposta à
visitação pública. Tivemos direito
a um rosário de explicações sobre
os efeitos dos venenos antimonotonia. E, como era de esperar, fomos colocados novamente frente
a frente com a causa mortis de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim
Morrison.
O paralelo é legítimo, mas por
outras razões. O que Cássia Eller
tinha em comum com esse povo
era uma rara integridade artística, sensibilidade à flor da pele e
coragem existencial. Tudo isso
transcende, em muito, aquilo que
a calou em pleno vôo.
De Cássia Eller, guardaremos
releituras viscerais de Luiz Melodia, Itamar Assumpção e Arrigo
Barnabé, Caetano e Ataulfo Alves, Beatles e Nação Zumbi, entre
tantos outros. Vamos guardar a
iconoclastia com causa e as extraordinárias performances no
palco.
Cássia Eller não partiu numa
batucada de bamba/na cadência
bonita do samba, mas nos deixou
um legado generoso, radicalmente moderno. Devemos aplaudi-la
por isso.
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