São Paulo, sábado, 05 de janeiro de 2002

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WALTER SALLES

H2O, Argentina e um adeus a Cássia Eller

Se você passou o final de ano em algum canto do país onde havia eletricidade, é provável que tenha sido enredado em conversas e mais conversas sobre o desempenho dos políticos que se submeteram ao "Show do Milhão", ancorado por Silvio Santos.
"É incrível o poder de sedução da música de baixa qualidade", brincava o dramaturgo Noel Coward. O mesmo raciocínio poderia valer para alguns programas de televisão. Luzes do cenário tremilicando como se fossem pano de fundo para um concurso de miss, música à Bernard Herrman tentando criar uma tensão fantasmagórica onde ela não existe, microfone-babador pendurado na gravata do dono da casa, tudo em "Show do Milhão" indica que estamos no reino da farsa.
Começa o programa. Surpreendentemente, alguns momentos são reveladores. Não deixa de ser sintomático, por exemplo, que Anthony Garotinho tenha se afogado na fórmula H2O justamente na semana das enchentes que vitimaram o Estado do Rio. Como também é sintomático que Paulo Maluf tenha soçobrado na pergunta sobre aquilo que ele nunca foi: santo.
Talvez não seja a ignorância de um ou outro homem público que nos surpreenda, e sim o fato de que os percebemos, por uma vez, cambaleantes, em dificuldade, impossibilitados de usar os discursos prontos atrás dos quais costumam se esconder. É paradoxal que esse (breve) desvendamento aconteça em um programa tão caricato, com perguntas de nível do pré-vestibular.
No meio desse "topa tudo por um refletor", deve-se saudar o pragmatismo de Rosinha Matheus. Movida por uma espécie de Realpolitik doméstica, Rosinha confessou ao público que não esperava que o marido, Garotinho, ultrapassasse a etapa mais rasteira da gincana. Rosinha sabe o que tem em casa. Foi o momento mais comovente deste já antológico "Show do Milhão".

Ainda a televisão, mas mudando de sinal. Vistos pelas lentes dos canais de notícias norte-americanos, os protestos populares na Argentina e a invasão da Casa Rosada e do Congresso são o prenúncio de um caos institucional que pode implodir o país.
As mesmas imagens podem ser vistas de outra forma. Converso com um jovem diretor que faz parte da nova onda de cinema argentino. "O que parece uma baderna não o é, absolutamente. Enxotamos um governo paralisado pelo FMI e, depois, enxotamos um bando de corruptos peronistas. E as pessoas vão continuar a se manifestar, até que surja uma geração de políticos com outros princípios", diz ele. Duhalde, que foi vice de Menem e é homem de folha corrida duvidosa, não perde por esperar.
Não é muito difícil entender por que a Argentina está do jeito que está. O país misturou o populismo irresponsável de Menem com um servilismo irrestrito ao neoliberalismo. Sucateou boa parte de uma sólida infra-estrutura estatal e abriu a porta ao desemprego. Para piorar esse coquetel Molotov, ainda optou por uma política cambial suicida.
Há 25 anos, 9% dos argentinos viviam em estado de pobreza. Hoje são 38%. Não é à toa que a Argentina é o país que concentra a maior quantidade de protestos populares da América do Sul. "A ocupação das praças públicas pelos descontentes é uma prova de vitalidade do país", diz meu amigo. Como cantava Cássia Eller: "Não amarga, marginal/ defende o teu pão/no pau".

Frio na espinha. O desaparecimento de Cássia Eller suscitou uma onda moralista como não se via desde a morte de outra pimentinha genial, Elis Regina.
Sua vida pessoal foi exposta à visitação pública. Tivemos direito a um rosário de explicações sobre os efeitos dos venenos antimonotonia. E, como era de esperar, fomos colocados novamente frente a frente com a causa mortis de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison.
O paralelo é legítimo, mas por outras razões. O que Cássia Eller tinha em comum com esse povo era uma rara integridade artística, sensibilidade à flor da pele e coragem existencial. Tudo isso transcende, em muito, aquilo que a calou em pleno vôo.
De Cássia Eller, guardaremos releituras viscerais de Luiz Melodia, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, Caetano e Ataulfo Alves, Beatles e Nação Zumbi, entre tantos outros. Vamos guardar a iconoclastia com causa e as extraordinárias performances no palco.
Cássia Eller não partiu numa batucada de bamba/na cadência bonita do samba, mas nos deixou um legado generoso, radicalmente moderno. Devemos aplaudi-la por isso.



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