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Crítica/"Conversas com Gaudí"
Obra reafirma a importância de Gaudí para Barcelona
Livro traz encontros do arquiteto com o colega Martinell Brunet durante 11 anos
RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1915, o então estudante de arquitetura
catalão e, depois, arquiteto César Martinell Brunet
aproxima-se de Antoni Gaudí
(1852/1926) em virtude de seu
fascínio sentimental (mais do
que consciente, como anota)
pela construção da igreja Sagrada Família.
Gaudí deixara seus projetos
de lado -o último deles a estupenda casa La Pedrera- para
tornar-se seu diretor, em 1883,
um ano após o início de sua edificação, e devotar o resto de sua
existência à construção do que
é considerada sua obra-prima,
baseada no uso inovador de formas geométricas naturais, com
uma complexidade que dialoga
com as artes egípcias, assírias,
greco-romanas e arábicas do
norte da África e a igreja Santa
Sofia de Constantinopla, em
particular.
A importância do livro reside
no fato de as notas de Brunet
consistirem na única "entrevista" concedida por Gaudí em vida, que detestava escrever. Entrevista que vai de 1915 a 1926.
Brunet registrou muito de seu
pensamento artístico e científico e de suas reflexões sobre a
Sagrada Família. Por exemplo:
"Revela que esta porta será
também policrômica; diz que
cor é vida e a falta de cor é manifestação mais visível da morte". Gaudí falava constantemente da luz do "campo de Tarragona" ao seu amigo Brunet,
como uma luz superior, que
predispunha os catalães do litoral a uma visão plástica das coisas. A cidade de Tarragona fica
ao sul de Barcelona. Gaudí e
Brunet nasceram em Reus, que
se situa, sentido interior, próxima a ela.
Fellini
A igreja ainda está em obras,
o que era previsto por Gaudí,
que citava a Catedral de Colônia, "que esteve por centúrias
sem abóbadas". No momento,
ergue-se sua torre principal. A
impressão que tive, agora em
outubro, quando fiz leituras de
poemas em Barcelona, na Casa
América Catalunya, foi a de que
estava dentro do filme "Roma",
de Federico Fellini, especificamente na cena em que os trabalhadores do metrô descobrem
um sítio arqueológico. A trilha
sonora da visita consistiu no
som de chiados ásperos de
guindastes em manobra e de
serras estridentes. A Sagrada
Família está viva não só por sua
complexidade mas porque,
penso, Gaudí -um visionário-
a previu como uma obra sempre em aberto, em movimento,
como um móbile.
Na Quinta Güell, construída
por Gaudí no final dos anos
1880 (Eusébio Güell foi próspero empresário que o apoiou incondicionalmente até sua própria morte) já se podem ver os
"trencadís", colagens de azulezos quebrados de várias cores,
rejuntados numa só peça. Os
"trencadís" (palavra catalã) ficam mais explícitos ainda no
Parque Güell, realizado de 1900
a 1914.
Neste parque, Gaudí utilizou-se do procedimento ready-made, sem sequer conhecer
Marcel Duchamp. Aproveitou
as curvas do morro, onde foi
traçado, aproveitou-se das
plantas locais, usou as palmeiras como falsos pilares etc.
O que quero assinalar é que
Picasso não teria composto
"Les Demoiselles D'Avignon"
(1907), sem conhecer os "trencadís". Picasso residiu por duas
vezes em Barcelona antes de fazer este trabalho e só se tornou
Picasso após sua estadia na cidade, de 1899 a 1900. Antes, como no caso de Machado de Assis, era um pintor convencional
(por duas décadas). Picasso freqüentou a Carrer d'Avinyó, em
Barcelona, onde havia bares e
bordéis. As meninas d'Avinyó
são prostitutas dessa rua.
A Sagrada Família é uma dessas obras ímpares do século 20
e, como segue, do 21. Disse Gaudí a Brunet: "...Afirma que a palavra é o tempo. (...) através da
palavra, vivenciamos épocas
passadas e futuras...".
As anotações de Brunet permitem-nos verificar que o catolicismo de Gaudí era dissociado
de sua obra lúdica e que, como o
historiador da arte Giulio Carlo
Argan, prefeito de direito, que
recuperou Roma, Gaudí foi o
prefeito de fato de Barcelona.
RÉGIS BONVICINO é poeta, autor de "Página
Órfã" e "Um Barco Remenda o Mar - Dez Poetas
Chineses Contemporâneos" (ambos pela Martins Fontes).
CONVERSAS COM GAUDÍ
Autor: César Martinell Brunet
Tradução: Alberto Marsicano
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 35 (216 págs.)
Avaliação: ótimo
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