São Paulo, sábado, 05 de fevereiro de 2005

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CONTO

Textos de Borges são referência para o escritor em 'A Coleção Particular'

Perec compõe divertimento erudito em obra de alusões

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Mesmo com o esclarecedor posfácio de Adriano Schwartz, colaborador da Folha, é muito difícil evitar a sensação de que estes dois contos de Georges Perec (1936-1982) limitam-se a ser um "divertissement" erudito sem maior interesse. Em "A Coleção Particular", Perec fala de um pintor imaginário, Heinrich Kürtz, que expõe um quadro no qual está retratado o célebre e igualmente imaginário colecionador de arte Hermann Raffke.
O colecionador é retratado numa sala cujas paredes estão cobertas pelos quadros de sua coleção. Entre estes, o pintor também incluiu uma miniatura do próprio retrato de Raffke com seus quadros, de modo que dentro do quadro há um quadro em que está o quadro que tem todos os quadros que estão no quadro... etc.
Esse processo, o da "mise en abîme" (colocação em abismo) tem um conhecido pedigree na literatura modernista (a partir de Gide e Pirandello), mas a influência direta de Perec está nos textos de Jorge Luis Borges (1899-1986). Contos como "Pierre Menard, Autor do Quixote" ou "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" assumem, muitas vezes, toda a aparência de ensaios, de textos críticos, e é o que também faz Perec. O recurso ao pastiche -uma imitação perfeita de artigos jornalísticos e de catálogos de exposições de pintura, por exemplo- é sistemático em "A Coleção Particular".
Apenas através de mínimas "rachaduras" no texto (uma ou outra incoerência temporal, uma ou outra alusão a personagens históricos fora de contexto) é que percebemos que tudo se trata de ilusão. Assim, um determinado gângster com quem o colecionador Raffke teve negócios se chama, no texto de Perec, Angelo Merisi. Alude-se a Michelangelo Merisi, o Caravaggio (1573-1610), um dos principais nomes da pintura italiana. Gracinhas desse tipo se repetem no conto, de forma mais ou menos perceptível.
Em "A Viagem de Inverno", conto curto de Perec que completa este delgado volume, fala-se da obra de um escritor desconhecido, cujos textos seriam apenas a colagem de passagens célebres -ou nem tanto- da literatura francesa do final do século 19. Temos aqui uma espécie de Pierre Menard ao inverso, num bricabraque literário que também lembra o conto "O Imortal", do mesmíssimo Borges.
Perec celebrizou-se por jogos intelectuais e linguísticos de alto virtuosismo, como o romance "La Disparition" (o desaparecimento), livro policial que foi inteiramente escrito sem a letra "e", que é a mais comum da língua francesa.
O escritor também trabalhou durante anos para a revista "Le Point", como autor de palavras cruzadas. Seus romances mais importantes - "Vida, Modo de Usar" e "As Coisas"- foram publicados no Brasil, respectivamente pela Companhia das Letras (1991) e pela editora Nova Crítica (1969). Discretas alusões a "Vida, Modo de Usar" estão inseridas em "A Coleção Particular", como esclarece o posfácio do livro. É a esse gênero de passatempos que os apreciadores de pintura, charadas, falsificações e pós-modernismo poderão se dedicar com esta bem-cuidada edição.


A Coleção Particular
   
Autor: Georges Perec
Tradução: Ivo Barroso
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 29,80 (93 págs.)


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