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LIVROS
CONTO
Textos de Borges são referência para o escritor em 'A Coleção Particular'
Perec compõe divertimento erudito em obra de alusões
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Mesmo com o esclarecedor
posfácio de Adriano
Schwartz, colaborador da Folha, é
muito difícil evitar a sensação de
que estes dois contos de Georges
Perec (1936-1982) limitam-se a ser
um "divertissement" erudito sem
maior interesse. Em "A Coleção
Particular", Perec fala de um pintor imaginário, Heinrich Kürtz,
que expõe um quadro no qual está retratado o célebre e igualmente imaginário colecionador de arte Hermann Raffke.
O colecionador é retratado numa sala cujas paredes estão cobertas pelos quadros de sua coleção.
Entre estes, o pintor também incluiu uma miniatura do próprio
retrato de Raffke com seus quadros, de modo que dentro do quadro há um quadro em que está o
quadro que tem todos os quadros
que estão no quadro... etc.
Esse processo, o da "mise en
abîme" (colocação em abismo)
tem um conhecido pedigree na literatura modernista (a partir de
Gide e Pirandello), mas a influência direta de Perec está nos textos
de Jorge Luis Borges (1899-1986).
Contos como "Pierre Menard,
Autor do Quixote" ou "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" assumem,
muitas vezes, toda a aparência de
ensaios, de textos críticos, e é o
que também faz Perec. O recurso
ao pastiche -uma imitação perfeita de artigos jornalísticos e de
catálogos de exposições de pintura, por exemplo- é sistemático
em "A Coleção Particular".
Apenas através de mínimas "rachaduras" no texto (uma ou outra
incoerência temporal, uma ou outra alusão a personagens históricos fora de contexto) é que percebemos que tudo se trata de ilusão.
Assim, um determinado gângster
com quem o colecionador Raffke
teve negócios se chama, no texto
de Perec, Angelo Merisi. Alude-se
a Michelangelo Merisi, o Caravaggio (1573-1610), um dos principais
nomes da pintura italiana. Gracinhas desse tipo se repetem no
conto, de forma mais ou menos
perceptível.
Em "A Viagem de Inverno",
conto curto de Perec que completa este delgado volume, fala-se da
obra de um escritor desconhecido, cujos textos seriam apenas a
colagem de passagens célebres
-ou nem tanto- da literatura
francesa do final do século 19. Temos aqui uma espécie de Pierre
Menard ao inverso, num bricabraque literário que também lembra o conto "O Imortal", do mesmíssimo Borges.
Perec celebrizou-se por jogos
intelectuais e linguísticos de alto
virtuosismo, como o romance
"La Disparition" (o desaparecimento), livro policial que foi inteiramente escrito sem a letra "e",
que é a mais comum da língua
francesa.
O escritor também trabalhou
durante anos para a revista "Le
Point", como autor de palavras
cruzadas. Seus romances mais
importantes - "Vida, Modo de
Usar" e "As Coisas"- foram publicados no Brasil, respectivamente pela Companhia das Letras
(1991) e pela editora Nova Crítica
(1969). Discretas alusões a "Vida,
Modo de Usar" estão inseridas
em "A Coleção Particular", como
esclarece o posfácio do livro. É a
esse gênero de passatempos que
os apreciadores de pintura, charadas, falsificações e pós-modernismo poderão se dedicar com esta
bem-cuidada edição.
A Coleção Particular
Autor: Georges Perec
Tradução: Ivo Barroso
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 29,80 (93 págs.)
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