São Paulo, segunda-feira, 05 de fevereiro de 2007

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GUILHERME WISNIK

Tragédia e farsa


O poder público compensa a incapacidade de agir eficientemente com intervenções cosméticas

OS MESES de janeiro, no Rio de Janeiro e em São Paulo, costumam ser marcados pelo contraste entre a celebração de datas comemorativas (dia do padroeiro, aniversário da cidade) e o anticlímax de acidentes causados pela chuva: inundações, desabamentos. E, apesar das obras de construção de piscinões e a consolidação de encostas, as administrações municipais e estaduais se sucedem sem conseguir reduzir esses desastres. Na verdade, eles parecem sempre aumentar.
As tragédias recentes confirmam suspeitas catastrofistas. Refiro-me às grandes enchentes ocorridas na região sudeste, ao reincidente desastre ambiental nos Estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais ocasionado pelo rompimento da barragem São Francisco, vazando lama pelo rio Muriaé (quatro vezes mais grave que o já ocorrido no ano passado), e, por fim, ao acidente nas obras do metrô, em São Paulo.
Embora com doses diferentes de cinismo e negligência técnica, todas as tragédias foram atribuídas às fortes chuvas. Atônitos, governo do Estado e Prefeitura, no caso de São Paulo, lamentam a falta de sorte. Por outro lado, tentam dar seqüência ao "pacote de inaugurações" do mês festivo: a retirada dos outdoors, a "revitalização" de ruas comerciais através da iniciativa privada (como a Oscar Freire e Avanhandava), e as reformas das praças da Sé e República (esta última, atrasada).
Vistos os fenômenos em conjunto, fica claro que o poder público parece querer compensar a sua incapacidade de agir com eficiência na escala da infra-estrutura com intervenções de cosmética urbana.
Por outro lado, em ambas as escalas está presente o mesmo princípio: a tendência a privatizar as suas ações, entregando as ruas da cidade aos comerciantes, que desenham portais, chafarizes e calçamentos conforme o seu gosto particular, e as obras do metrô a um consórcio de empreiteiras que domina todas as etapas do trabalho, inclusive a sua fiscalização (sendo que o Metrô sempre teve um corpo técnico de excelência). Se nos anos 60 e 70 a palavra de ordem era "planejamento", hoje é "parceria público-privada". Trocou-se o centralismo burocrático pela liberdade ágil, mas, também, a visão sistêmica pelas ações fragmentárias.
Nesse sentido, a lei de proibição aos outdoors surpreende pelo intervencionismo estratégico um tanto fora de moda: um velho arroubo populista em meio ao pragmatismo liberal. O que não deixa de ser um ponto a favor do prefeito, mas faz com que o seu voluntarismo corra o risco de tornar-se quixotesco, enrolando-se em pendengas judiciais sem fim e transformando a cidade em um cemitério de carcaças de outdoors. Ao desmonte do Estado corresponde um teatro burlesco, sintetizado pela cena da remoção exemplar do primeiro outdoor, na presença do prefeito, que se enganchou em um poste e acabou caindo sobre uma rede de fiação telefônica.
Segundo Marx, os eventos históricos se repetem duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Nós, em São Paulo, talvez estejamos assistindo à ocorrência das duas simultaneamente.


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