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GUILHERME WISNIK
Tragédia e farsa
O poder público compensa a incapacidade de agir eficientemente com intervenções cosméticas
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OS MESES de janeiro, no Rio de
Janeiro e em São Paulo, costumam ser marcados pelo
contraste entre a celebração de datas comemorativas (dia do padroeiro, aniversário da cidade) e o anticlímax de acidentes causados pela chuva: inundações, desabamentos. E,
apesar das obras de construção de
piscinões e a consolidação de encostas, as administrações municipais e
estaduais se sucedem sem conseguir
reduzir esses desastres. Na verdade,
eles parecem sempre aumentar.
As tragédias recentes confirmam
suspeitas catastrofistas. Refiro-me
às grandes enchentes ocorridas na
região sudeste, ao reincidente desastre ambiental nos Estados do Rio
de Janeiro e de Minas Gerais ocasionado pelo rompimento da barragem
São Francisco, vazando lama pelo
rio Muriaé (quatro vezes mais grave
que o já ocorrido no ano passado), e,
por fim, ao acidente nas obras do
metrô, em São Paulo.
Embora com doses diferentes de
cinismo e negligência técnica, todas
as tragédias foram atribuídas às fortes chuvas. Atônitos, governo do Estado e Prefeitura, no caso de São
Paulo, lamentam a falta de sorte. Por
outro lado, tentam dar seqüência ao
"pacote de inaugurações" do mês
festivo: a retirada dos outdoors, a
"revitalização" de ruas comerciais
através da iniciativa privada (como a
Oscar Freire e Avanhandava), e as
reformas das praças da Sé e República (esta última, atrasada).
Vistos os fenômenos em conjunto,
fica claro que o poder público parece
querer compensar a sua incapacidade de agir com eficiência na escala
da infra-estrutura com intervenções
de cosmética urbana.
Por outro lado, em ambas as escalas está presente o mesmo princípio:
a tendência a privatizar as suas
ações, entregando as ruas da cidade
aos comerciantes, que desenham
portais, chafarizes e calçamentos
conforme o seu gosto particular, e as
obras do metrô a um consórcio de
empreiteiras que domina todas as
etapas do trabalho, inclusive a sua
fiscalização (sendo que o Metrô
sempre teve um corpo técnico de excelência). Se nos anos 60 e 70 a palavra de ordem era "planejamento",
hoje é "parceria público-privada".
Trocou-se o centralismo burocrático pela liberdade ágil, mas, também,
a visão sistêmica pelas ações fragmentárias.
Nesse sentido, a lei de proibição
aos outdoors surpreende pelo intervencionismo estratégico um tanto
fora de moda: um velho arroubo populista em meio ao pragmatismo liberal. O que não deixa de ser um
ponto a favor do prefeito, mas faz
com que o seu voluntarismo corra o
risco de tornar-se quixotesco, enrolando-se em pendengas judiciais
sem fim e transformando a cidade
em um cemitério de carcaças de outdoors. Ao desmonte do Estado corresponde um teatro burlesco, sintetizado pela cena da remoção exemplar do primeiro outdoor, na presença do prefeito, que se enganchou
em um poste e acabou caindo sobre
uma rede de fiação telefônica.
Segundo Marx, os eventos históricos se repetem duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como
farsa. Nós, em São Paulo, talvez estejamos assistindo à ocorrência das
duas simultaneamente.
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