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CARLOS HEITOR CONY
Cena de gripe e pecado na adolescência
Sob as cobertas, os arrepios de
frio. Vira-se de bruços contra
o colchão e basta ficar quieto e logo começa a sentir calor. Do ângulo em que está, olhando a mesinha de cabeceira, o copo vazio é
imenso, coando a luz da tarde. A
garrafa de água mineral choca, a
colher de remédio dentro da xícara de porcelana azul com frisos
dourados.
- "Tudo parece como antigamente."
Sempre que fica doente é como
se voltasse à infância. Os mesmos
cuidados da mãe, com as mesmas
superstições. Só que agora há lucidez, ele sabe que não tem nada,
uma gripe mais forte, amanhã estará bom. Em criança, a doença
era uma desgraça ou ameaça, um
de seus irmãos morrera aos dois
anos, de meningite. A mãe sempre temia pelo pior e ele imaginava o próprio enterro, as flores, o
caixão branco -seria branco como o do irmão, ou teria direito ao
caixão envernizado dos adultos?
Lá fora, a tarde acaba de cair e
logo virá o pai. Depois o jantar,
ele ouvirá o ruído dos talheres ao
longe. A mãe lhe trará a refeição,
será bom comer como antigamente, mimado, coisa frágil e
amada.
- Ana vem aí.
A mãe bota a cara na porta para avisar que a moça chegou. Não
está contrariada, embora não
goste dela.
- Como é, já morreu?
Ana é a mesma lá de fora. Dentro do quarto, ela é a cor e o cheiro
do mundo. Ali na cama, o dia foi
vazio e longo, nada aconteceu, a
não ser a febre, 38 graus, 37 e
meio, remédio, um gole d'água, o
calafrio, o calor súbito, remédio,
39 graus, a injeção que o rapaz da
farmácia veio dar, uma torrada,
suor, 37 e meio.
Ana é a vida que foi igual para
todo mundo. Viver é ser feito
Ana, claridade e som: o mundo
que não foi dele.
Ela bota a mão na cama:
- Posso sentar aqui?
- Pode.
- Então chega pra lá.
Ele se encolhe com cuidado,
abrindo espaço para ela. Sabe que
o cordão do pijama está solto, só
consegue dormir com o cordão do
pijama aberto, e ele teme que a
moça veja sua nudez.
- Sua mãe não se incomoda?
- Não. O pai chega daqui a
pouco.
Ana se curva e morde o queixo
dele. Ele sente no peito o peso e o
calor dela.
- Quando casarmos, sempre
que você adoecer eu vou ficar na
cama também.
Com a mão, alisa os cabelos do
rapaz. Ele a olha, angustiado.
- Ana, estou com febre.
Ela quer beijá-lo. Mas o rapaz
está com gripe e gripe pega. Os dedos abrem a blusa do pijama e o
peito cabeludo aparece. Beija ali,
sentindo na boca a pele aquecida
pela febre.
A mão dela tateia, procurando,
procurando.
- Quer?
Ele sente a mão lá embaixo, onde a febre de vez em quando coloca um tremor de desejo.
- Não.
Ana se levanta. Vai até a janela
e vê as luzes da rua que se acendem.
- Lá está aquela vaca olhando.
- Que vaca?
- A mãe do Oscar. É uma vaca.
Gosta de rapazes. Papa tudo, até
o menino que vem trazer o pão.
- Como é que você sabe?
Ela não responde.
- Bom, mais tarde volto, depois do jantar...
Ele agora vê as pernas da moça.
O desejo é uma fisgada em seu
corpo castigado de febre.
- Ana!
- Que é?
Ela abandona a janela e vem
para ele.
- Não. Fique onde estava. Ali.
Ela volta à janela. Quando percebe que o rapaz a deseja, levanta
o vestido.
- Assim está bom?
Ele não responde. Os olhos acesos, a boca tensa, engole Ana com
raiva. A moça comenta:
- Olhe que isso faz mal. Dá tuberculose.
Ele já se livrou do desejo. Sente-se frustrado, como se tivesse corrido para apanhar um ônibus impossível.
Se a mãe entrasse naquele momento, ele não saberia o que fazer
com a mão. Ana apanha um lenço.
- Toma.
Ela chega mais perto e levanta
novamente o vestido:
- Beija.
- Ana, nunca vou me casar
com você.
- Ué! Por quê?
- Você faz isso com todos... é
uma ...
- Tá certo. Mas não precisa
ofender. Vim aqui porque pensei
que você gostaria... Vou embora...
Não volto mais....
- Não quero que você fique
zangada... Mas você não presta...
Faz aquilo no cinema. E agora,
aproveitando a minha doença,
veio me provocar. Isso não se
faz....
- Mas você não gosta de mim?
- Gosto. Gosto de suas pernas.
Elas são a coisa mais bonita do
mundo.
- Então veja pela última vez.
Levanta a saia até a cintura.
Faz um giro sobre si mesma, depois o vestido cai, em silêncio, e
em silêncio ela vai embora.
O pai já chegou e toma banho.
O lampião da rua coloca na vidraça da janela um clarão amarelado. No escuro, ele sente que a
febre aumentou. Tem a garganta
seca, vontade de beber qualquer
coisa doce, um suco de laranja,
com bastante gelo.
A mãe entra no quarto trazendo a sopa que deve estar quente:
- Meu filho, você está muito
abatido. Vou pedir a seu pai para
chamar o médico outra vez... Os
remédios não estão adiantando...
A gripe vira pneumonia...
- Não, não precisa. Amanhã
estarei bom. Agora quero dormir.
Dormirei bastante. Estou cansado.
Dorme até que o dia surja outra
vez em sua janela, trazendo um
gosto de suor, um suor que cheira
a convalescença e pecado.
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