São Paulo, sexta-feira, 05 de março de 2010

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ANÁLISE

Cantor foi o precursor da bossa nova

CARLOS CALADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

É triste constatar que um artista tão inventivo e essencial para a modernização da música popular brasileira, como Johnny Alf, tenha recebido em vida uma parcela de reconhecimento muito aquém do que sua obra merece. Não que ele reclamasse. Da maneira mais nobre e elegante, cultivou sua arte por mais de 60 anos, se apresentando para plateias muitas vezes reduzidas, mas conscientes de que ouvi-lo era um privilégio.
Ninguém mais do que ele merece o título de precursor da bossa nova. Seu samba "Rapaz de Bem", composto em 1953 e gravado dois anos depois, é uma prova indiscutível de originalidade. Muito do que veio a se chamar de bossa nova, no final daquela década, foi antecipado por Alf nessa gravação: o sofisticado encadeamento harmônico, os versos descontraídos, a maneira moderna de cantar sem impostar a voz.
Com sua concepção inovadora, ele contribuiu ativamente para fazer as cabeças dos futuros articuladores da bossa nova. Tom Jobim, Newton Mendonça e João Gilberto eram alguns dos amigos e admiradores que frequentavam suas apresentações na boate Plaza, em Copacabana, durante os anos de 1953 e 1954. Outros, como Roberto Menescal, Carlinhos Lyra e Luís Carlos Vinhas, ainda menores de idade, tinham que se esconder se algum policial entrasse na casa noturna.
Nada mais justo que, anos depois, Johnny Alf fosse convidado por eles a participar dos primeiros shows oficiais dos bossa-novistas, que foram organizados em universidades do Rio de Janeiro. Ao anunciá-lo, Ronaldo Bôscoli reconhecia o vanguardismo do mestre, dizendo que ele era "bossa nova desde o dia em que nasceu".
Humilde, Alf não construía mitos em suas entrevistas. Jamais escondeu que, além da básica formação erudita, o jazz teve um papel fundamental em sua concepção musical. Gostava de ouvir jazzistas modernos, como o pianista Lenny Tristano ou o saxofonista Lee Konitz, mas seus modelos foram mesmo o pianista Nat King Cole e a cantora Sarah Vaughan.
Sua paixão pelo cinema resultou em outras influências: por meio dos musicais de Hollywood entrou em contato com as pérolas de mestres da canção norte-americana, como George Gershwin, Cole Porter e Irving Berlin. Já no campo da música brasileira, seu interesse recaía sobre compositores que buscavam algo mais elaborado, como Custódio Mesquita ou Garoto, também considerados precursores da bossa.
Obviamente, no caso de um compositor tão criativo, essa refinada combinação de influências só serve de referência para tentar entender em qual contexto nasceram obras-primas como "Ilusão à Toa", "Céu e Mar", "Olhos Negros" ou "Fim de Semana em Eldorado". Sem um toque definitivo de genialidade, elas não existiriam.
Hoje é difícil acreditar que "Eu e a Brisa", a sublime canção pela qual ele será sempre lembrado, tenha sido rejeitada nas eliminatórias do Festival de MPB da TV Record, em 1967. Um caso irônico que mostra como o original Johnny Alf foi um criador à frente de seu tempo.


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