São Paulo, segunda-feira, 05 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Seleção natural

Foi o próprio Gustav Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) quem sugeriu, no começo de século 19, que a leitura ao raiar o dia dos jornais era a prece matinal do homem contemporâneo. Pouco mudou qualitativamente nesses últimos 200 anos: os jornais se multiplicaram, apareceram as publicações semanais ou mensais, o rádio, os noticiários que antecediam os filmes nas salas de cinema e os vespertinos na TV (facultando a muitos comerem algo entre uma telenovela e a seguinte), redes como a CNN que se dedicam ao assunto ininterruptamente e, há mais de dez anos, começou a se consolidar a internet. Mas, sublinhe-se, tudo isso não passa, malgrado seu aspecto de dilúvio ou avalanche, de um fator quantitativo.
Se, para os "junkies" viciados em notícias e comentários, a religiosidade moderna do ato, que hoje consiste não somente em ler, mas também em ouvir, assistir e/ ou navegar, continua em linhas gerais inalterada, o que vem sucedendo é que, de uma situação se não "mono", pelo menos oligoteísta, migramos para um politeísmo caótico. Orar todas as manhãs aos deuses em questão ou interromper o que se esteja fazendo para atender ao chamado do muezim ou almuadem que, do alto de seu minarete high-tech, anuncia "breaking news" são desdobramentos naturais do que dissera o filósofo alemão. Mas quantos deuses podemos seguir simultaneamente antes que nos confinem ao pavilhão dos esquizofrênicos?
A maioria dos leitores parece ter resolvido o problema de forma simples. Ela elege, principalmente de acordo com simpatias ideológicas, um determinado jornal e mantém-se fiel a este, traindo-o ocasionalmente só para obter, sobretudo na TV, imagens mais gráficas de algo recente ou, em crises, olimpíadas e campeonatos de futebol, de modo a se deixar saturar pela cobertura de tais eventos.
Durante os anos 90, porém, o acesso através da web a uma parcela substancial dos mais famosos órgãos noticiosos do mundo se tornou uma tentação capaz de fazer balançar qualquer beato que rezava por uma única e exclusiva cartilha, uma cartilha que, ademais, havia sido não raro herdada dos pais ou do grupo social freqüentado pelo leitor. Que deve, portanto, um fiel fazer agora que os deuses, além de se multiplicarem, buscam a toda hora seduzi-lo?
Durante o processo na França, em 1997, de Maurice Papon, um alto funcionário do governo colaboracionista de Vichy que, virando a casaca na hora certa, aderiu ao gaullismo no final da guerra e prosseguiu depois tranqüila e impunemente sua carreira décadas a fio, o correspondente da revista norte-americana "New Yorker" Adam Gopnik ouviu as lamúrias de um colega holandês. A acreditar neste, se Cristo ressuscitasse em Amsterdã, mesmo se a imprensa local anunciasse com exclusividade o acontecido, o "furo" seria ignorado no restante do planeta.
A internet, subvertendo até certo ponto a hierarquia entre as publicações de Província e as das grandes capitais, promete que, hoje em dia, esse não seria mais o caso. Um furo ocorrido no Congo ou na Guatemala podem alcançar-nos tão rápido quanto algo que teve lugar em Nova York ou Paris. Quando bombas são detonadas nos trens de Madri, o leitor mais curioso deixa de lado o "New York Times" ou "Le Monde" e vai direto ao site do "El País" ou "La Vanguardia" colher as notícias ainda quentes. Se a guerra civil iugoslava se repetisse (como talvez esteja, com a "limpeza étnica" da minoria sérvia pela maioria albanesa, se repetindo agora em Kosovo), é às fontes de Belgrado, Zagreb, Sarajevo e Pristina que recorreríamos em primeiro lugar desde, é claro, que nos chegassem numa língua acessível, de preferência em inglês.
Como e quando, porém, tamanha enxurrada de alterações quantitativas acabará se convertendo numa grande mudança qualitativa? Afinal, um dos paradoxos dos últimos anos é que, quanto mais instável fica o solo debaixo delas, mais as pessoas buscam se agarrar às verdades previamente consagradas. Questionar, por pouco que seja, uma visão de mundo nunca deixa de ser desorientador. Daí que o apego às informações nas quais se embute determinado viés, mais que uma mera oração matinal, tenha se transformado num credo repetido tão mais fervorosamente quanto mais a realidade subverta suas certezas. Em suma, aumenta o número de leitores que percorrem as publicações menos para se informarem do que há de novo do que para se constatarem de novo que tudo ainda segue igual.
Curiosamente, assim, a circulação cada vez mais intensa de pontos de vista diferentes e mesmo contraditórios tem levado uma parcela não insignificante dos leitores a repudiar tal pluralidade, como se lançassem mão da cera com que Ulisses tapara os ouvidos de seus remadores para que estes não cedessem ao canto das sereias. E nada os deixa tão indignados quanto encontrar nas páginas de uma publicação que, dia a dia, assegurava-lhes estar firmemente ancorada, digamos, na esquerda, direita ou centro, uma opinião divergente. É como se sentissem que uma opinião dessas puxa o tapete de certezas inalteráveis sobre o qual prefeririam continuar caminhando eternamente. Ou talvez sua reação se assemelhe à do menino que, tendo ouvido a mãe contar identicamente o mesmo conto de fadas inúmeras vezes, protesta quando esta se desvia um milímetro que seja da versão habitual .
Numa época de transições abruptas e incertezas crescentes como a nossa, até mesmo Charles Darwin sugeriria que são os leitores capazes, deixando de lado a segurança, de albergarem em seu cérebro informações e opiniões contraditórias aqueles que estarão mais aptos a sobreviver.


Texto Anterior: Televisão: Mira Nair encara os "exóticos" anos 80
Próximo Texto: Pacto sinistro
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.