|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Seleção natural
Foi o próprio Gustav Wilhelm
Friedrich Hegel (1770-1831)
quem sugeriu, no começo de século 19, que a leitura ao raiar o dia
dos jornais era a prece matinal do
homem contemporâneo. Pouco
mudou qualitativamente nesses
últimos 200 anos: os jornais se
multiplicaram, apareceram as
publicações semanais ou mensais,
o rádio, os noticiários que antecediam os filmes nas salas de cinema e os vespertinos na TV (facultando a muitos comerem algo entre uma telenovela e a seguinte),
redes como a CNN que se dedicam ao assunto ininterruptamente e, há mais de dez anos, começou a se consolidar a internet.
Mas, sublinhe-se, tudo isso não
passa, malgrado seu aspecto de
dilúvio ou avalanche, de um fator
quantitativo.
Se, para os "junkies" viciados
em notícias e comentários, a religiosidade moderna do ato, que
hoje consiste não somente em ler,
mas também em ouvir, assistir e/
ou navegar, continua em linhas
gerais inalterada, o que vem sucedendo é que, de uma situação se
não "mono", pelo menos oligoteísta, migramos para um politeísmo caótico. Orar todas as manhãs aos deuses em questão ou
interromper o que se esteja fazendo para atender ao chamado do
muezim ou almuadem que, do alto de seu minarete high-tech,
anuncia "breaking news" são desdobramentos naturais do que dissera o filósofo alemão. Mas quantos deuses podemos seguir simultaneamente antes que nos confinem ao pavilhão dos esquizofrênicos?
A maioria dos leitores parece ter
resolvido o problema de forma
simples. Ela elege, principalmente
de acordo com simpatias ideológicas, um determinado jornal e
mantém-se fiel a este, traindo-o
ocasionalmente só para obter, sobretudo na TV, imagens mais
gráficas de algo recente ou, em
crises, olimpíadas e campeonatos
de futebol, de modo a se deixar
saturar pela cobertura de tais
eventos.
Durante os anos 90, porém, o
acesso através da web a uma parcela substancial dos mais famosos
órgãos noticiosos do mundo se
tornou uma tentação capaz de fazer balançar qualquer beato que
rezava por uma única e exclusiva
cartilha, uma cartilha que, ademais, havia sido não raro herdada dos pais ou do grupo social freqüentado pelo leitor. Que deve,
portanto, um fiel fazer agora que
os deuses, além de se multiplicarem, buscam a toda hora seduzi-lo?
Durante o processo na França,
em 1997, de Maurice Papon, um
alto funcionário do governo colaboracionista de Vichy que, virando a casaca na hora certa, aderiu
ao gaullismo no final da guerra e
prosseguiu depois tranqüila e impunemente sua carreira décadas
a fio, o correspondente da revista
norte-americana "New Yorker"
Adam Gopnik ouviu as lamúrias
de um colega holandês. A acreditar neste, se Cristo ressuscitasse
em Amsterdã, mesmo se a imprensa local anunciasse com exclusividade o acontecido, o "furo"
seria ignorado no restante do planeta.
A internet, subvertendo até certo ponto a hierarquia entre as publicações de Província e as das
grandes capitais, promete que,
hoje em dia, esse não seria mais o
caso. Um furo ocorrido no Congo
ou na Guatemala podem alcançar-nos tão rápido quanto algo
que teve lugar em Nova York ou
Paris. Quando bombas são detonadas nos trens de Madri, o leitor
mais curioso deixa de lado o
"New York Times" ou "Le Monde" e vai direto ao site do "El
País" ou "La Vanguardia" colher
as notícias ainda quentes. Se a
guerra civil iugoslava se repetisse
(como talvez esteja, com a "limpeza étnica" da minoria sérvia
pela maioria albanesa, se repetindo agora em Kosovo), é às fontes
de Belgrado, Zagreb, Sarajevo e
Pristina que recorreríamos em
primeiro lugar desde, é claro, que
nos chegassem numa língua acessível, de preferência em inglês.
Como e quando, porém, tamanha enxurrada de alterações
quantitativas acabará se convertendo numa grande mudança
qualitativa? Afinal, um dos paradoxos dos últimos anos é que,
quanto mais instável fica o solo
debaixo delas, mais as pessoas
buscam se agarrar às verdades
previamente consagradas. Questionar, por pouco que seja, uma
visão de mundo nunca deixa de
ser desorientador. Daí que o apego às informações nas quais se
embute determinado viés, mais
que uma mera oração matinal,
tenha se transformado num credo
repetido tão mais fervorosamente
quanto mais a realidade subverta
suas certezas. Em suma, aumenta
o número de leitores que percorrem as publicações menos para se
informarem do que há de novo do
que para se constatarem de novo
que tudo ainda segue igual.
Curiosamente, assim, a circulação cada vez mais intensa de pontos de vista diferentes e mesmo
contraditórios tem levado uma
parcela não insignificante dos leitores a repudiar tal pluralidade,
como se lançassem mão da cera
com que Ulisses tapara os ouvidos
de seus remadores para que estes
não cedessem ao canto das sereias. E nada os deixa tão indignados quanto encontrar nas páginas de uma publicação que, dia
a dia, assegurava-lhes estar firmemente ancorada, digamos, na
esquerda, direita ou centro, uma
opinião divergente. É como se
sentissem que uma opinião dessas
puxa o tapete de certezas inalteráveis sobre o qual prefeririam
continuar caminhando eternamente. Ou talvez sua reação se assemelhe à do menino que, tendo
ouvido a mãe contar identicamente o mesmo conto de fadas
inúmeras vezes, protesta quando
esta se desvia um milímetro que
seja da versão habitual .
Numa época de transições
abruptas e incertezas crescentes
como a nossa, até mesmo Charles
Darwin sugeriria que são os leitores capazes, deixando de lado a
segurança, de albergarem em seu
cérebro informações e opiniões
contraditórias aqueles que estarão mais aptos a sobreviver.
Texto Anterior: Televisão: Mira Nair encara os "exóticos" anos 80 Próximo Texto: Pacto sinistro Índice
|