|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Kitano revela face cômica
ALVARO MACHADO
especial para a Folha
Takeshi Kitano estava cansado
de ser identificado pelo público
ocidental como autor de filmes
policiais de fundo existencialista,
como "Hana-Bi - Fogos de Artifício" (97) e "Sonatine" (93), premiados em festivais europeus e
exibidos no Brasil.
Então cometeu "Verão Feliz",
para revelar sua face Beat Takeshi,
como é conhecido e festejado em
humorísticos da TV japonesa
desde os anos 70 e mesmo em comédias e elegias que dirigiu antes
em cinema, porém sem exibição
comercial fora de seu país.
No filme, além da direção e dos
desenhos dos créditos, o ator Beat
Takeshi se encarrega do personagem principal, Kikujiro, figura
que remete ao "homem que nunca ria", o genial comediante do cinema mudo norte-americano
Buster Keaton.
Da condição de membro da máfia yakuza, Kikujiro guarda a face
impassível e as tatuagens emblemáticas pelo torso. Salvo essas
marcas, é como um gângster precocemente aposentado.
Cansado de uma vida sem movimento, Kikujiro torna-se guardião de um garoto infeliz, que vive
com a avó depois que a mãe o descartou para formar família mais
respeitável. Kikujiro e o garoto
saem pelas estradas japonesas,
num "road movie" cujo final seria
a casa da mãe, assim como Fernanda Montenegro carregou um
fedelho pelo sertão em busca do
pai, em "Central do Brasil".
À parte essa semelhança de
enredo com a produção brasileira, "Verão Feliz" jamais corrompe em melodrama a sua vocação
para comédia de linguagem visual, como a do cinema mudo.
Dessa grande arte, toma emprestados outros ícones além de Keaton: "O Garoto", de Chaplin, e a
dupla Gordo e Magro.
Como peixes e polvos fantasiam-se os personagens do filme,
para fazer sorrir o garoto abandonado. Nessa missão colaboram o
diretor de fotografia Katsume Yanagishima -que fabricou genuínos "azuis Kitano" e um "verde-verão escandaloso"- e Joe Hisaihi, autor de um comentário musical minimalista tão delicioso
quanto as imagens.
Sob mais de um aspecto, a estranha trupe poderia ser vista como
uma atualização da ralé fauvista
de "Dodeskaden" (70), obra-prima de Akira Kurosawa. Com uma
diferença: os novos deserdados
do milagre econômico japonês
estão à margem não mais por estigma de classe, mas por falta de
afinidade com as metas sociais e
culturais da nação.
No poema contemporâneo de
Kitano não há lugar para o socialismo de esquerda. Se houvesse, o
filme faria par perfeito com outro
inesquecível "filme de estrada":
"Gaviões e Passarinhos", dirigido
por Pier Paolo Pasolini numa Itália ainda pouco européia (65).
Para se tornar uma refilmagem
livre de "Gaviões", só falta a "Verão Feliz" o chatíssimo corvo comunista que persegue com teorias vazias os peregrinos italianos.
De resto, Kitano parece ter em
comum com Pasolini o talento
"renascentista" para múltiplas expressões, o gosto pela reelaboração de composições pictóricas
tradicionais (em "Kikujiro", as do
teatro kabuki) e pelo louvor à
criança e ao anjo que ela guarda
consigo; aos bem-aventurados
"pobres de espírito" (ou ingênuos); aos que vivem à margem.
Avaliação:
Filme: Verão Feliz (Kikujiro)
Diretor: Takeshi Kitano
Produção: Japão, 1999
Com: Takeshi Kitano, Yusuke Sekiguchi
Quando: a partir de hoje, no cine Espaço Unibanco 1
Texto Anterior: "Eu nunca escrevo nada, o filme está na minha cabeça" Próximo Texto: Teatro: Folha promove leitura de peça inédita Índice
|