São Paulo, sexta-feira, 05 de maio de 2000


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CRÍTICA

Kitano revela face cômica

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Takeshi Kitano estava cansado de ser identificado pelo público ocidental como autor de filmes policiais de fundo existencialista, como "Hana-Bi - Fogos de Artifício" (97) e "Sonatine" (93), premiados em festivais europeus e exibidos no Brasil.
Então cometeu "Verão Feliz", para revelar sua face Beat Takeshi, como é conhecido e festejado em humorísticos da TV japonesa desde os anos 70 e mesmo em comédias e elegias que dirigiu antes em cinema, porém sem exibição comercial fora de seu país.
No filme, além da direção e dos desenhos dos créditos, o ator Beat Takeshi se encarrega do personagem principal, Kikujiro, figura que remete ao "homem que nunca ria", o genial comediante do cinema mudo norte-americano Buster Keaton.
Da condição de membro da máfia yakuza, Kikujiro guarda a face impassível e as tatuagens emblemáticas pelo torso. Salvo essas marcas, é como um gângster precocemente aposentado.
Cansado de uma vida sem movimento, Kikujiro torna-se guardião de um garoto infeliz, que vive com a avó depois que a mãe o descartou para formar família mais respeitável. Kikujiro e o garoto saem pelas estradas japonesas, num "road movie" cujo final seria a casa da mãe, assim como Fernanda Montenegro carregou um fedelho pelo sertão em busca do pai, em "Central do Brasil".
À parte essa semelhança de enredo com a produção brasileira, "Verão Feliz" jamais corrompe em melodrama a sua vocação para comédia de linguagem visual, como a do cinema mudo. Dessa grande arte, toma emprestados outros ícones além de Keaton: "O Garoto", de Chaplin, e a dupla Gordo e Magro.
Como peixes e polvos fantasiam-se os personagens do filme, para fazer sorrir o garoto abandonado. Nessa missão colaboram o diretor de fotografia Katsume Yanagishima -que fabricou genuínos "azuis Kitano" e um "verde-verão escandaloso"- e Joe Hisaihi, autor de um comentário musical minimalista tão delicioso quanto as imagens.
Sob mais de um aspecto, a estranha trupe poderia ser vista como uma atualização da ralé fauvista de "Dodeskaden" (70), obra-prima de Akira Kurosawa. Com uma diferença: os novos deserdados do milagre econômico japonês estão à margem não mais por estigma de classe, mas por falta de afinidade com as metas sociais e culturais da nação.
No poema contemporâneo de Kitano não há lugar para o socialismo de esquerda. Se houvesse, o filme faria par perfeito com outro inesquecível "filme de estrada": "Gaviões e Passarinhos", dirigido por Pier Paolo Pasolini numa Itália ainda pouco européia (65).
Para se tornar uma refilmagem livre de "Gaviões", só falta a "Verão Feliz" o chatíssimo corvo comunista que persegue com teorias vazias os peregrinos italianos.
De resto, Kitano parece ter em comum com Pasolini o talento "renascentista" para múltiplas expressões, o gosto pela reelaboração de composições pictóricas tradicionais (em "Kikujiro", as do teatro kabuki) e pelo louvor à criança e ao anjo que ela guarda consigo; aos bem-aventurados "pobres de espírito" (ou ingênuos); aos que vivem à margem.


Avaliação:     

Filme: Verão Feliz (Kikujiro)
Diretor: Takeshi Kitano
Produção: Japão, 1999
Com: Takeshi Kitano, Yusuke Sekiguchi
Quando: a partir de hoje, no cine Espaço Unibanco 1


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