São Paulo, sexta-feira, 05 de maio de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA

Adivinhe o que tem de sobremesa?

NINA HORTA
Colunista da Folha

"Dona, o que eu faço de sobremesa? Acabou tudo." A empregada, encostada na porta, cruza os braços e traça com o dedão do pé um zero imaginário no chão encerado. "Acabou tudo mesmo? Nem uma fruta?"
"Três bananas e só."
Vai subindo uma raiva pelo cangote da patroa. Ela sabe que a moça está ali fazendo aquelas constatações num momento de puro gozo, na hora em que é impossível tomar providência, na hora H do atraso, e lá vem aquela perturbação de sobremesa. E dá para ler na cara da cozinheira improvisada, como se fosse num banner de propaganda: "Você é uma péssima dona de casa. É metida a rica e só tem três bananinhas na cesta. Você e seu marido, só vocês e eu, e nem um reles docinho para molhar o bico".
É aí que sobe a mostarda ao nariz da patroa, aparecem-lhe os brios.
"Então, minha filha, vamos ver o que temos e o que podemos fazer com estas três sobreviventes."
A cara da empregada continua a ser um estudo de dúvida e censura. Ela queria queijos, pêras, uns figos, sorvetes fechados na caixa, nada de restos, e a patroa insistindo naquelas bananas, faça-me o favor, rico é mesmo engraçado...
"Vamos lá, menina. Você escreve direitinho. Vamos botar tudo nas fichas que começamos e nunca acabamos quando você entrou aqui." Sentam-se as duas na mesa da copa. A patroa põe a bolsa do lado, suspira fundo e começa o ditado. A moça suspira também, pega a Bic, chupa a ponta e pega a caneta com três dedos, o mindinho para o ar.
"Receita número um. Banana com leite de coco. Cozinhe as bananas descascadas em leite de coco diluído em um pouco de água e açúcar a gosto. Sirva com um pouco da calda na qual cozinhou."
"E se não tiver leite de coco?"
"Tem. Mas, se não tivesse, podia cozinhar só na água com açúcar."
A cozinheira torce a boca e revira os olhos um pouco estrábicos. A patroa continua, feroz: "Receita número dois, pegue outra ficha. Bananas salteadas. Descasque as bananas, corte ao meio no sentido do comprimento, polvilhe com farinha de trigo. Ponha um pouco de manteiga na frigideira e frite as bananas até ficarem douradas. Polvilhe com açúcar. Se quiser, ponha um pouco de rum quente por cima e bote fogo com um fósforo".
A cozinheira escreve atenta e bem, com a ponta dos lábios entre os dentes, esforçada.
"Tem também a banana com iogurte. Pique a banana num cálice bonito, daqueles vermelhos da avó, jogue o iogurte por cima e polvilhe com açúcar mascavo."
"Acho que o iogurte acabou."
"Não importa. Descasque e corte as bananas em rodelas e ponha numa vasilha que caiba no forninho. À parte, misture um pouco de farinha de trigo, manteiga e açúcar e uma pitada de baunilha e amasse até formar uma farofa grossa. Despeje sobre as bananas e asse por uns 20 minutos."
"E se não tiver farinha de trigo?"
"Sem problema, corte a banana em metades, ponha sobre um prato que vá ao forno, polvilhe com açúcar e raspa de limão e uns pedacinhos de manteiga. Forno."
"Tem uns restinhos de sorvete", murmura a megera já meio domada. "Pois então. Ponha rodelinhas de banana numa pequena calda, deixe caramelar e sirva com uma bolinha de sorvete. E o que mais tem na geladeira?"
A empregada levanta, massageando a mão direita, fazendo fita, abre a geladeira, enfia a cabeça lá dentro.
"Tem um resto de massa de pastel de feira", sublinha as palavras "resto" e "feira".
"Ótimo, pasteizinhos recheados com banana levemente amassada. Frite normalmente e polvilhe com açúcar."
"Na minha terra, os meninos vendem isso de manhã, em tabuleiros, com o nome de pastel real", diz ela com um sorriso.
A patroa puxa as fichas e escreve com letra forte e esparramada a receita de "crisps" de banana.
A empregada amolece, desistida: "Ai, dona, deixa pra lá. Tá bom. Vou é botar as bananas no micro com casca e tudo, abro assim um pouco, ponho por cima chocolate de brigadeiro."
Estava encerrado mais um capítulo da eterna luta de classes. A patroa pegou a bolsa, e a empregada, assobiando bem alto, foi abrir a porta da garagem.


E-mail: ninahort@folhasp.com.br



Texto Anterior: Boa mesa 2000: Evento tem dias especialmente etílicos
Próximo Texto: Mundo Gourmet - Josimar Melo: Falta cozinha ao Gambino
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.