|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Adivinhe o que tem de sobremesa?
NINA HORTA
Colunista da Folha
"Dona, o que eu faço de sobremesa? Acabou tudo." A empregada, encostada na porta, cruza os
braços e traça com o dedão do pé
um zero imaginário no chão encerado. "Acabou tudo mesmo? Nem
uma fruta?"
"Três bananas e só."
Vai subindo uma raiva pelo
cangote da patroa. Ela sabe que a
moça está ali fazendo aquelas
constatações num momento de
puro gozo, na hora em que é impossível tomar providência, na
hora H do atraso, e lá vem aquela
perturbação de sobremesa. E dá
para ler na cara da cozinheira improvisada, como se fosse num
banner de propaganda: "Você é
uma péssima dona de casa. É metida a rica e só tem três bananinhas na cesta. Você e seu marido,
só vocês e eu, e nem um reles docinho para molhar o bico".
É aí que sobe a mostarda ao nariz da patroa, aparecem-lhe os
brios.
"Então, minha filha, vamos ver
o que temos e o que podemos fazer
com estas três sobreviventes."
A cara da empregada continua
a ser um estudo de dúvida e censura. Ela queria queijos, pêras,
uns figos, sorvetes fechados na caixa, nada de restos, e a patroa insistindo naquelas bananas, faça-me o favor, rico é mesmo engraçado...
"Vamos lá, menina. Você escreve direitinho. Vamos botar tudo
nas fichas que começamos e nunca acabamos quando você entrou
aqui." Sentam-se as duas na mesa
da copa. A patroa põe a bolsa do
lado, suspira fundo e começa o ditado. A moça suspira também, pega a Bic, chupa a ponta e pega a
caneta com três dedos, o mindinho para o ar.
"Receita número um. Banana
com leite de coco. Cozinhe as bananas descascadas em leite de coco diluído em um pouco de água e
açúcar a gosto. Sirva com um
pouco da calda na qual cozinhou."
"E se não tiver leite de coco?"
"Tem. Mas, se não tivesse, podia
cozinhar só na água com açúcar."
A cozinheira torce a boca e revira os olhos um pouco estrábicos. A
patroa continua, feroz: "Receita
número dois, pegue outra ficha.
Bananas salteadas. Descasque as
bananas, corte ao meio no sentido
do comprimento, polvilhe com farinha de trigo. Ponha um pouco
de manteiga na frigideira e frite
as bananas até ficarem douradas.
Polvilhe com açúcar. Se quiser,
ponha um pouco de rum quente
por cima e bote fogo com um fósforo".
A cozinheira escreve atenta e
bem, com a ponta dos lábios entre
os dentes, esforçada.
"Tem também a banana com
iogurte. Pique a banana num cálice bonito, daqueles vermelhos
da avó, jogue o iogurte por cima e
polvilhe com açúcar mascavo."
"Acho que o iogurte acabou."
"Não importa. Descasque e corte as bananas em rodelas e ponha
numa vasilha que caiba no forninho. À parte, misture um pouco
de farinha de trigo, manteiga e
açúcar e uma pitada de baunilha
e amasse até formar uma farofa
grossa. Despeje sobre
as bananas e asse
por uns 20 minutos."
"E se não tiver farinha de trigo?"
"Sem problema,
corte a banana em
metades, ponha sobre um prato que vá
ao forno, polvilhe
com açúcar e raspa
de limão e uns pedacinhos de manteiga.
Forno."
"Tem uns restinhos de sorvete",
murmura a megera
já meio domada.
"Pois então. Ponha
rodelinhas de banana numa pequena
calda, deixe caramelar e sirva com uma
bolinha de sorvete. E o que mais
tem na geladeira?"
A empregada levanta, massageando a mão direita, fazendo fita, abre a geladeira, enfia a cabeça lá dentro.
"Tem um resto de massa de pastel de feira", sublinha as palavras
"resto" e "feira".
"Ótimo, pasteizinhos recheados
com banana levemente amassada. Frite normalmente e polvilhe
com açúcar."
"Na minha terra, os meninos
vendem isso de manhã, em tabuleiros, com o nome de pastel real",
diz ela com um sorriso.
A patroa puxa as fichas e escreve com letra forte e esparramada
a receita de "crisps" de banana.
A empregada amolece, desistida: "Ai, dona, deixa pra lá. Tá
bom. Vou é botar as bananas no
micro com casca e tudo, abro assim um pouco, ponho por cima
chocolate de brigadeiro."
Estava encerrado mais um capítulo da eterna luta de classes. A
patroa pegou a bolsa, e a empregada, assobiando bem alto, foi
abrir a porta da garagem.
E-mail: ninahort@folhasp.com.br
Texto Anterior: Boa mesa 2000: Evento tem dias especialmente etílicos Próximo Texto: Mundo Gourmet - Josimar Melo: Falta cozinha ao Gambino Índice
|