São Paulo, sexta-feira, 05 de maio de 2000


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CARLOS HEITOR CONY

A mesmice na arte pode ser uma chatice

Certa vez, ia com Otto Maria Carpeaux para um encontro com estudantes em Juiz de Fora. Parei o carro em Areal, então um trecho da União-Indústria, que tinha meia dúzia de borracheiros e lanchonetes de cada lado da estrada. Tomamos um café, esticamos as pernas e, numa calçada, vimos enorme cesto de peças do artesanato local, coisas primitivas, cafonas, malfeitas, todas com a indicação: ""Lembrança de Areal".
Eu estranhei que houvesse gente capaz de fazer aquilo. Mais sábio do que eu, Carpeaux respondeu: ""O mais estranho é que há gente que compra!".
O curioso é que todas aquelas peças se pareciam entre si. Eram objetos diferentes, lapiseiras, blocos de anotações, saca-rolhas, calendários, barômetros, pequenos cabides, cestinhas para pães. Apesar de tanta e tamanha diversidade, tudo era igual, tudo era tão parecido que a gente podia usar o calendário como saca-rolha e a lapiseira como cabide.
Mudando de gênero, mas ficando na mesmice de certo tipo de arte popular. Os bonequinhos do mestre Vitalino, tão decantados pelas cultas gentes, me dão um tédio letal. Não chego ao exagero do Elio Gáspari, que sugere uma máquina de moer carne gigantesca para moer todos os bonecos do mestre, reduzindo-os ao barro primitivo. Mas que são monótonos e expressam a mesmíssima coisa, lá isso são.
Outro pulo na mesma direção. Ali pelos anos 60, quatro mocinhas simpáticas formaram um grupo musical que fez época. Era o Quarteto em Cy, cujo prestígio ficou mais ou menos associado à época áurea da bossa nova. Acontecia com o quarteto o mesmo fenômeno do artesanato de Areal e dos bonecos do mestre Vitalino. Tudo o que elas cantavam parecia a mesma coisa, fosse um novo samba de Tom Jobim ou um velho sucesso do Ary Barroso.
Outro artista que lembra esta mesmice é o fotógrafo Sebastião Salgado. Fixou-se num tema, o que é comum a qualquer artista. Mas expressa sempre a mesmíssima coisa. Parece que até agora fez uma foto só.
Ora, dirão, o verdadeiro artista persegue uma nota só, um tema único. Balzac criou mais de 2.000 tipos, mas -segundo a famosa observação de Marx- ele só fez realmente um personagem, que foi o Dinheiro.
Sim, podemos concordar com Marx, o Dinheiro é o núcleo do imenso painel humano que Balzac chamou de comédia. Mas é espantosa a variedade de situações e atores que expressaram este único personagem. César Biroteau e Eugenia Grandet, por exemplo.
E o que dizer de Michelangelo, que fez "Pietás", fixando-se num mesmo tema, usando os mesmos elementos, e conseguiu momentos distintos da mesma dor? Em Roma, lá está a mais famosa delas, a jovem que coloca no colo o cadáver do filho homem. Em Florença, a placidez do grupo romano dá lugar à retorcida angústia dos mesmos personagens. E, em Milão, a terceira "Pietá" é a mais enigmática de todas, é misteriosa, não parece humana, é fantasmagórica. Um só tema, três expressões diferentes.
Poderia citar ainda os "Concertos de Brandemburgo" de J. S. Bach, em que o tema é praticamente único, mas as expressões são incontáveis.
Com as telenovelas acontecem o mesmo fenômeno dos souvenirs de Areal, dos bonecos de mestre Vitalino, dos arranjos vocais do Quarteto em Cy e das fotos do Sebastião Salgado. Mudam os cenários, os atores, as circunstâncias, as tramas. Mas elas sempre expressam a mesmíssima coisa, os equívocos afetivos, os golpes de herança, os segredos dramáticos, as peçonhas das supermegeras e as lágrimas da mocinha, em contraponto com os pigarros do pai ou do avô.
Cézanne pintou maçãs, mas nunca se repetiu. Maquiavel tinha uma teoria de poder que expressou em dois veículos bem diferentes. Fez "O Príncipe", em forma de ensaio, e "A Mandrágora", em forma de peça teatral. O recado que ele dá é o mesmo. Tanto para conquistar e manter o poder como para conquistar uma mulher, os macetes são iguais e maquiavelicamente ensinados em dois textos diferentes.
No cancioneiro popular, há uma tendência de repetir o mesmo tema (a dor-de-corno). Um dos mestres do gênero, Lupicínio Rodrigues, sem nunca sair de sua temática única, encontrou uma diversidade genial, michelangelesca. "Ela nasceu com o destino da Lua, para todos que andam na rua, não vai viver só pra mim." "Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar." "Nunca, nem que o mundo caia sobre mim, o que tu me pedes eu farei."
Camões fez muitos sonetos que formam a sua "Lírica". Têm um tema comum, único: o amor. E como são diferentes entre si, sem deixarem de ser genuinamente camonianos. Fellini foi acusado de ter feito um único filme. Uma acusação verdadeira, por sinal, ele próprio admitia isso. Mas como são diferentes "A Trapaça" e "Amarcord". E, ao mesmo tempo, como as lembranças de um homem podem formar a sua grande trapaça.



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