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CARLOS HEITOR CONY
A mesmice na arte pode ser uma chatice
Certa vez, ia com Otto Maria
Carpeaux para um encontro com
estudantes em Juiz de Fora. Parei
o carro em Areal, então um trecho
da União-Indústria, que tinha
meia dúzia de borracheiros e lanchonetes de cada lado da estrada.
Tomamos um café, esticamos as
pernas e, numa calçada, vimos
enorme cesto de peças do artesanato local, coisas primitivas, cafonas, malfeitas, todas com a indicação: ""Lembrança de Areal".
Eu estranhei que houvesse gente
capaz de fazer aquilo. Mais sábio
do que eu, Carpeaux respondeu:
""O mais estranho é que há gente
que compra!".
O curioso é que todas aquelas
peças se pareciam entre si. Eram
objetos diferentes, lapiseiras, blocos de anotações, saca-rolhas, calendários, barômetros, pequenos
cabides, cestinhas para pães. Apesar de tanta e tamanha diversidade, tudo era igual, tudo era tão
parecido que a gente podia usar o
calendário como saca-rolha e a
lapiseira como cabide.
Mudando de gênero, mas ficando na mesmice de certo tipo de arte popular. Os bonequinhos do
mestre Vitalino, tão decantados
pelas cultas gentes, me dão um tédio letal. Não chego ao exagero do
Elio Gáspari, que sugere uma máquina de moer carne gigantesca
para moer todos os bonecos do
mestre, reduzindo-os ao barro
primitivo. Mas que são monótonos e expressam a mesmíssima
coisa, lá isso são.
Outro pulo na mesma direção.
Ali pelos anos 60, quatro mocinhas simpáticas formaram um
grupo musical que fez época. Era
o Quarteto em Cy, cujo prestígio
ficou mais ou menos associado à
época áurea da bossa nova. Acontecia com o quarteto o mesmo fenômeno do artesanato de Areal e
dos bonecos do mestre Vitalino.
Tudo o que elas cantavam parecia a mesma coisa, fosse um novo
samba de Tom Jobim ou um velho sucesso do Ary Barroso.
Outro artista que lembra esta
mesmice é o fotógrafo Sebastião
Salgado. Fixou-se num tema, o
que é comum a qualquer artista.
Mas expressa sempre a mesmíssima coisa. Parece que até agora fez
uma foto só.
Ora, dirão, o verdadeiro artista
persegue uma nota só, um tema
único. Balzac criou mais de 2.000
tipos, mas -segundo a famosa
observação de Marx- ele só fez
realmente um personagem, que
foi o Dinheiro.
Sim, podemos concordar com
Marx, o Dinheiro é o núcleo do
imenso painel humano que Balzac chamou de comédia. Mas é
espantosa a variedade de situações e atores que expressaram este
único personagem. César Biroteau e Eugenia Grandet, por
exemplo.
E o que dizer de Michelangelo,
que fez "Pietás", fixando-se num
mesmo tema, usando os mesmos
elementos, e conseguiu momentos
distintos da mesma dor? Em Roma, lá está a mais famosa delas, a
jovem que coloca no colo o cadáver do filho homem. Em Florença,
a placidez do grupo romano dá
lugar à retorcida angústia dos
mesmos personagens. E, em Milão, a terceira "Pietá" é a mais
enigmática de todas, é misteriosa,
não parece humana, é fantasmagórica. Um só tema, três expressões diferentes.
Poderia citar ainda os "Concertos de Brandemburgo" de J. S.
Bach, em que o tema é praticamente único, mas as expressões
são incontáveis.
Com as telenovelas acontecem o
mesmo fenômeno dos souvenirs
de Areal, dos bonecos de mestre
Vitalino, dos arranjos vocais do
Quarteto em Cy e das fotos do Sebastião Salgado. Mudam os cenários, os atores, as circunstâncias,
as tramas. Mas elas sempre expressam a mesmíssima coisa, os
equívocos afetivos, os golpes de
herança, os segredos dramáticos,
as peçonhas das supermegeras e
as lágrimas da mocinha, em contraponto com os pigarros do pai
ou do avô.
Cézanne pintou maçãs, mas
nunca se repetiu. Maquiavel tinha uma teoria de poder que expressou em dois veículos bem diferentes. Fez "O Príncipe", em forma de ensaio, e "A Mandrágora",
em forma de peça teatral. O recado que ele dá é o mesmo. Tanto
para conquistar e manter o poder
como para conquistar uma mulher, os macetes são iguais e maquiavelicamente ensinados em
dois textos diferentes.
No cancioneiro popular, há
uma tendência de repetir o mesmo tema (a dor-de-corno). Um
dos mestres do gênero, Lupicínio
Rodrigues, sem nunca sair de sua
temática única, encontrou uma
diversidade genial, michelangelesca. "Ela nasceu com o destino
da Lua, para todos que andam na
rua, não vai viver só pra mim."
"Eu gostei tanto, tanto, quando
me contaram que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa
de um bar." "Nunca, nem que o
mundo caia sobre mim, o que tu
me pedes eu farei."
Camões fez muitos sonetos que
formam a sua "Lírica". Têm um
tema comum, único: o amor. E
como são diferentes entre si, sem
deixarem de ser genuinamente
camonianos. Fellini foi acusado
de ter feito um único filme. Uma
acusação verdadeira, por sinal,
ele próprio admitia isso. Mas como são diferentes "A Trapaça" e
"Amarcord". E, ao mesmo tempo,
como as lembranças de um homem podem formar a sua grande
trapaça.
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