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DRAUZIO VARELLA
Mercurocromo, Merthiolate e outras besteiras
O que arde cura, dizia minha avó. Com o dito, justificava o ardor causado pelo álcool
que ela derramava na carne viva
dos meus machucados. Depois,
assoprava, espalhava mercurocromo, e eu voltava para o futebol
da rua com a canela pintada de
vermelho.
Nessa época, a popularidade do
mercurocromo era enorme. Dos
esfolamentos superficiais aos cortes profundos, a recomendação
era unânime: corre para passar
mercurocromo.
Mais tarde, surgiu o Merthiolate e abalou a hegemonia do mercurocromo. Era um pouco menos
vermelho, é verdade, mas em
compensação vinha com uma pazinha de plástico grudada na parte interna da tampa, pronta para
aplicar o líquido diretamente na
ferida.
Além disso, o Merthiolate ardia
feito fogo. Tivesse minha avó vivido um pouco mais, sem dúvida
teria abandonado o mercurocromo e aderido ao Merthiolate.
Embora essas duas preparações
dominassem o mercado dos "desinfetantes de ferimentos" por
muitos anos, é bom lembrar que
concorrência não lhes faltava:
água oxigenada, álcool canforado, água boricada, arnica, pó de
café e uma infinidade de pomadas como a Maravilha Curativa
do Dr. Humphrey, Minâncora,
Hipoglós e muitas outras, que povoavam os armários dos banheiro para atender à demanda dos
acidentes domésticos.
Agora o Ministério da Saúde resolveu proibir produtos que contêm mercúrio em sua formulação,
e o leitor reclama no jornal: "Que
mal pode haver neles, se minha
avó já os usava?".
Sem querer menosprezar a sabedoria da avó de ninguém
-muito menos a da minha-, é
preciso dizer que, apesar de serem
mulheres prendadas, prestimosas, que nos encheram de carinho,
nossas vovós não entendiam nada de bacteriologia. Não sabiam
que as bactérias mais agressivas
são capazes de crescer no vidro de
mercurocromo e que a pazinha
de Merthiolate que pincelou o
machucado traz para dentro do
recipiente bactérias que sobreviverão até serem semeadas na ferida seguinte.
A conduta atual diante de esfolamentos, arranhões, cortes superficiais ou profundos pode ser
resumida em duas palavras: água
e sabão! E mais nada.
Se o ferimento for superficial,
basta lavá-lo com água corrente
por alguns minutos para retirar
completamente os resíduos aderidos a ele e esfregar delicadamente
com sabão. Do mais caro sabonete ao sabão do tanque, todos servem; não faz a menor diferença.
O importante é esfregar até fazer
bastante espuma, sem pressa.
Se o ferimento for mais profundo, com perda de sangue, o procedimento deve ser exatamente o
mesmo, porém precedido por
compressão do local com um pano limpo até estancar o sangramento. Nunca se deve aplicar torniquete, colocar pó ou pomada no
local, mas apenas comprimir o
tempo necessário para estancar o
fluxo sanguíneo. Depois, água
farta e sabão à vontade para matar as bactérias.
No caso das queimaduras, também não passe nada: coloque a
área queimada numa bacia com
água a temperatura ambiente ou
diretamente embaixo da torneira
por cinco minutos ou mais. Só isso! Nunca passar pomada, manteiga, esfregar no cabelo e muito
menos aplicar gelo. As pomadas
para queimadura podem provocar reações alérgicas ou aderir firmemente ao local e causar mais
sofrimento, e o contato direto do
tecido queimado com o gelo só
serve para agravar o dano às células.
Se surgirem bolhas no local
queimado, não as fure! Deixe que
o líquido nelas contido seja absorvido naturalmente.
Existe apenas uma situação em
que os especialistas recomendam
fazer curativo em queimadura:
quando a área lesada é mais extensa e dolorosa. Nesses casos, cobrir a região queimada com um
pano limpo pode aliviar a dor.
Para evitar que o pano grude nos
tecidos queimados, o local deve
ser previamente coberto com uma
fina camada de vaselina.
Essas medidas simples evitam
complicações infecciosas, alergias, podem ser adotadas imediatamente no próprio local em que
o acidente ocorreu e custam muito barato. Por isso vá até o armarinho do banheiro e jogue no lixo
todos os desinfetantes e pomadas
para queimadura.
O Ministério da Saúde merece
elogios por obrigar a retirada do
mercado dos assim chamados desinfetantes que contêm mercúrio,
das pomadas com ácido bórico e
dos famigerados fortificantes preparados com álcool para estimular as criancinhas.
Embora haja muito a ser feito, o
conjunto de realizações do ministério tem sido respeitável. Não há
como deixar de reconhecer os benefícios trazidos a todos nós pela
política dos medicamentos genéricos, pelo programa nacional de
combate à Aids, pela dimensão
dada ao programa dos agentes de
saúde, além de outras ações. Para
não falar na proibição da propaganda do cigarro, crime contra a
sociedade brasileira tolerado por
tantos médicos que ocuparam a
pasta da Saúde.
Dito isso, tomo a liberdade de
sugerir ao ministério que não pare nas proibições de mercurocromo, ácido bórico e bebida alcoólica para crianças de colo. Por que
não aproveitar os ventos favoráveis e retirar do mercado todos os
produtos que apregoam falsas
propriedades terapêuticas? Por
exemplo: as centenas de remédios
para proteger o fígado, revitalizar
a memória, melhorar o cansaço,
fortificar ou manter a saúde do
organismo.
Por que não impedir que a indústria farmacêutica continue a
enganar os ingênuos repetindo
exaustivamente na TV que vitamina C evita gripes e resfriados?
Por acaso essas empresas podem
contar mentiras como essa na televisão dos países ricos?
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